Este texto não pretende tomar a parte pelo todo. Por imperativo ou estratégia comercial, o novo filme de Lars von Trier é apresentado em dois volumes de cerca de duas horas cada, organizados em capítulos relativamente autónomos, embora também existam personagens que transitam de uns para outros, além da protagonista claro. Para quem for com expectativas elevadas pelo que o tema e a obra do realizador dinamarquês possam sugerir, é bem provável que saia surpreendido. Não forçosamente bem surpreendido, mas a surpresa é facto incontornável. Lars von Trier, até ver o volume em falta (estreia marcada para 30 de Janeiro), fez o seu filme mais arejado, nada daquela claustrofobia pomposa e castigadora a que nos habituara. Nymphomaniac: Volume 1 (Ninfomaníaca: Volume 1, 2013) abre-se para nós como uma enciclopédia de saberes cruzados e de práticas sexuais nem tão hard quanto isso. Parece-se com uma versão filmada do Lars Little Sex Book, meio a sério meio a brincar nas voltas que dá ao tabu da hipersexualidade feminina…
Se von Trier se escusou desta vez do papel herético, sejamos nós hereges por ele. O filme inicia-se com planos de chuva e neve que caem num beco onde será encontrada uma mulher desmaiada e muito mal tratada. Antes que a memória de Joe (Charlotte Gainsbourg) dispare pelos incontáveis episódios sexuais da protagonista, já o espectador cinéfilo se põe a recordar La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012), que no filme de Jean-Claude Brisseau entrava pela vida da personagem interpretada pelo realizador um pouco da mesma maneira. A relação que se estabelecerá depois entre Joe e Seligman (Stellan Skarsgard) tem natureza dissemelhante, porque por um lado esta primeira parte (e por extensão o filme todo?) assenta na confissão de Joe, que começa por dizer que mereceu o castigo que teve em resultado da sua conduta sexual. A outra referência recente que pode tomar de assalto o espectador é a do filme E Agora? Lembra-me (2013) de Joaquim Pinto (estreia mais à frente no ano), que ao longo do seu trajecto ziguezagueante fazia intersectar vários domínios do conhecimento, por vezes de forma inesperada e num movimento expansivo que supera os propósitos e os resultados deste Ninfomaníaca: Volume 1 – assim posto talvez relevem a heresia maior de comparar o filme de Lars von Trier ao de Joaquim Pinto, enciclopédicos cada um à sua idiossincrática maneira.
Ninfomaníaca: Volume 1 sugere ter sido filmado sob o efeito de antidepressivos tal a bonomia – tratando-se da alma tantas vezes promovida torturada de von Trier – que perpassa as suas micro-narrativas focando vários aspectos da vida de Joe: o lado familiar onde sobressai a mãe glacial, o lado social com o grupo de jovens raparigas que se revoltam pela autodeterminação do prazer das suas vulvas, e o lado mais privado de Joe com a vasta carteira de amantes, que serve para Lars von Trier se entreter e divertir quem para aí estiver virado, com as pequenas misérias dos que se deixam aprisionar pelo triângulo de Vénus, constituído pelo amor, ciúme e sexo. Desta vez a provocação talvez seja mais a sério, porque mais a brincar. Lars von Trier coloca-se dentro e fora do divã, na medida em que no fim do sensacional capítulo que encerra a primeira metade de Ninfomaníaca: Volume 1 (intitulado The Little Organ School), liga a polifonia de J.S. Bach ao prazer que Joe diz experimentar com a sobreposição das naturezas várias dos seus amantes. O Lars Little Sex Book não pariu nenhum rato, nem nos parece que se preste ao óbvio trocadilho. Titilante quanto baste, explícito ma non troppo, porque o seu verdadeiro prazer reside na abertura e fecho das gavetas que o constituem, deixa-nos com um “volume” (xô engraçadinhos!) divertido e inteligente, que desperta por último a curiosidade de ver o segundo filme.