Dois elementos podem fazer antecipar os resultados desastrosos, até embaraçosos, deste Volume 2: o conjunto da obra de Lars von Trier, para os dissidentes de qualquer hora, e convenhamos que o realizador fez o bastante para a deserção das massas, mais cinzentas ou mais porosas, pelo menos desde Dancer in the Dark (2000); ou o desapontamento motivado pelo Volume 1 do mesmo Nymphomaniac, que não foi o caso. Por isso maior agora a sensação de termos sido ludibriados pelo dinamarquês, de termos caído que nem anjinhos no seu canto de sereia ninfomaníaca que ao deixar cair a máscara revela o provocador boçal e misógino de outrora.
Nymphomaniac: Volume 2 amarra todo o projecto numa desonestidade que é apenas grave, não na medida em que ofenda a credulidade de alguns espectadores, mas por mostrar a perversão de todo o projecto de von Trier, que não olha a quaisquer parâmetros de ética para criar os seus efeitos de choque. Até a cumplicidade estabelecida entre Joe e Seligman acaba arrastada na sabujice gratuita de von Trier, que lhe dá um ponto final que está muito para além do que poderíamos considerar de jogo maligno ou sarcástico, na medida em que nos deixa sem regras a que nos agarrarmos. Vale tudo neste Volume 2, desde a filmagem das práticas castigadoras do sadomasoquismo, sem qualquer filtro que permita a distanciação necessária para que aquilo a que assistimos não seja regido pura e simplesmente por uma lógica de humilhação punitiva para quem filma e de autocomplacência para quem assim permite ser filmado (isto é, a lógica S&M passa a ser inerente ao processo de filmagem); até à discussão literal, no sentido das opções dos enquadramentos, entre dois portentosos falos cor de ébano, em outro dos momentos aviltantes deste filme necessariamente complementar: não faz sentido considerar autonomamente os dois volumes de Nymphomaniac (Ninfomaníaca), embora desse jeito guardar os méritos do primeiro filme a estrear e esquecer por completo as baixezas do segundo.
O rol de horrores inclui ainda uma autocitação do prólogo de Antichrist (Anticristo, 2009), talvez o pior do pior de von Trier, que na opinião do realizador, nem interessa saber porquê, terá justificado a recauchutagem, uma vez mais para manipular a resposta do espectador que ainda recorde o desenlace trágico e abjecto do original; o convite a Jean-Marc Barr (protagonista de Europa, 1991, de Lars von Trier) para fazer um cameo numa cena de inquérito e tortura que acaba com a revelação da pedofilia recalcada da personagem, premiada com uma felação de Joe que se terá apiedado depois da sua vítima; ou a utilização canhestra do lesbianismo como última fronteira apaziguadora da ninfomania, quando o espectador experimentava a indiferença de ter sido sujeito a um espectáculo aniquilador de qualquer relação possível entre sexo e diversão, sexo e prazer, sexo e individualismo, sexo e vida, erigida por Ninfomaníaca: Volume 1.
É um mistério como é que actores que nem estando em início de carreira, nem a necessitar de reforço de visibilidade para a mesma, continuam a sujeitar-se à receita de Lars von Trier. Será uma questão de catarse narcísica? De deslumbramento face ao estatuto do autor provocador? Atracção pelo complot desonesto e manipulador? Pequenos atentados entre amigos, sem coerência moral ou artística, engalanados de grande cinema que destrói quaisquer vestígios de reflexão ou entretenimento por si criados. Se a afirmação de que a dado momento deixara de sentir prazer, proferida no final do Volume 1 por Joe, pode ser atribuída à prática cinematográfica de Lars von Trier, o tiro que se escuta no final do Volume 2, já com o ecrã a negro, é como que a demissão cobarde de quem terá preferido não assistir à nulidade das consequências do que viera de completar.