Por estes dias, sobretudo depois do recente e fabuloso Blue Jasmine (2013), está muito na moda dizer-se que Woody Allen só faz bons filmes quando os ambienta na sua cidade-obsessão (Nova Iorque), mas não quando embarca nos filmes-de-postal a convite de várias cidades europeias (Barcelona, Paris, Roma), e isto porque, alegadamente, só em Nova Iorque é que o nova-iorquino conseguiria destilar a genuinidade e a genialidade da sua marca. Sem nos querermos, por ora, intrometer no debate, preferimos colocar as coisas, retrospectivamente, doutra forma: se é assim, se é em Nova Iorque que Woody Allen consegue coser a malha dos seus melhores filmes, que pensar desta comédia sci-fi que não se passa nem na Big Apple, nem tão-pouco na Europa, mas sim algures no distópico “paralelo central” da “Federação Americana” (o antigo sudoeste dos EUA, entretanto extintos em virtude de uma guerra nuclear), de que só vemos o seu lado rural, no distante ano de… 2173?
Bem, com Sleeper (O Herói do Ano 2000, 1973), aqueles que alinham pela tese da essencialidade de Nova Iorque para a auto-superação na obra de Woody Allen teriam, pelo menos, uma dor de cabeça (das boas), visto que, sem Manhattan, sem Brooklyn, sem, enfim, os nova-iorquinos, Allen constrói aquele que é um dos seus melhores filmes e, por conseguinte, uma das suas melhores comédias (realizada naquela que é a década dourada, a de 70, da sua filmografia) – e uma das suas comédias mais físicas, mais slapstick, onde a influência de Buster Keaton mais intensamente se faz sentir (ao que ajuda a própria maquilhagem de Allen enquanto disfarçado de mordomo-robot, evocando a brancura dos rostos do mudo). A graça dessa fisicalidade é potenciada por outro dos must-have dos filmes de Allen: a música, ou, melhor dizendo, o jazz. De facto, a obra de Allen tem sido pródiga na promoção de uma osmose entre o jazz e a comédia, entre música e cinema – enfim, entre som e imagem. Sleeper não é excepção e o dixieland jazz que se ouve no filme, cânone do jazz dos anos 10 de Nova Orleães assente num primitivo swing e em composições rítmicas aceleradas, rima na perfeição com as cenas filmadas em fast forward nas quais Allen usa e abusa de gags memoráveis (quando foge das forças de segurança à saída do laboratório; na luta com um guarda num centro de reparação de mordomos-robots; numa outra luta, agora com um guarda de uma “plantação” de fruta, na qual escorrega vezes sem conta na casca de uma banana gigante…).
Imaginar como será o futuro é um tema sempre estimulante (seja na nossa meninice, seja enquanto adultos), sobretudo para uma cabeça imaginativa e criativa como a de Woody Allen. Ora, em Sleeper, estamos, dizíamos, em 2173, 200 anos após o dia em que Miles Monroe (interpretado pelo próprio Woody Allen), na sequência de complicações decorrentes de uma operação a uma úlcera, foi congelado a mando da irmã, servindo de cobaia à investigação científica (esta involuntariedade na sujeição como cobaia ao serviço da Ciência é muitíssimo relevante num filme em que Allen acaba a dizer que não acredita, de todo, nela (Ciência), por ser um “intellectual dead end” para meia dúzia de tipos metidos em fatos esbanjarem dinheiros de Fundações). É um “admirável mundo novo” este, o de 2173, dotado de todos os apetrechos e excentricidades que, normalmente, os homens associam ao porvir (alguns já não tão excêntricos assim para 2014): carros-naves, coletes-voadores, casas futuristas (como a Sculptured House, do arquitecto Charles Deaton, que se vê no filme – ou não tão futuristas assim, se pensarmos que o movimento arquitectónico modernista se notabilizou a partir da 2.ª Grande Guerra, com todas as derivações “futuristas” dele emergentes), alimentos gigantes, mordomos-robots, cães-robots e por aí fora. Se bem que – e por aqui se vê o olhar perspicaz e aguçado de Woody Allen –, apesar de todos estes gadgets (termo, à época, ainda sem a plena dimensão que hoje lhe atribuímos), não deixa de ser um mundo em que a super-tecnologia acaba por se auto-anular e por ser mesmo ineficiente ou só ridícula [como nos filmes de Jacques Tati, com Playtime (Play Time – Vida Moderna, 1967) à cabeça] – vejam-se as cenas em que as bazucas das forças de segurança, quando disparadas, explodem-se sempre a si mesmas, ou o papel de cozinha com que Allen está enrolado no momento em que se prepara para ser “descongelado”, ou, ainda, o pudim gigante com o qual Allen travará uma árdua batalha. Difícil não pensar, por isso, nos nossos dias e em como a condição divina que a tecnologia adquiriu permite à indústria criar simplesmente por criar, estimulando necessidades consumistas irracionais, sem que isso signifique um real melhoramento para a qualidade de vida das pessoas (muito menos para a sua felicidade, subjectivismos à parte) – alguém parou para pensar em como, entre mil exemplos que podiam ser dados, a tecnologia touch absolutamente nada acrescentou aos telemóveis senão torná-los menos manejáveis?
Mas aquela parafernália, sendo “futurista”, não bastaria para ser alleniana. Por isso é que, “sociologicamente”, as “novidades” – o mesmo é dizer, em linguagem alleniana, as neuroses – também são de peso: além da grande maioria dos homens ser impotente – et pour cause –, a sexualidade é coisa banal, tão banal que o orgasmo se alcança numa muito higiénica cápsula chamada “Orgasmatron”; o haxixe, a cocaína e afins foram substituídos pelo “Org”, uma pequena bola cinzenta que, ao ser manejada, provoca gargalhadas no “consumidor”; as universidades, certamente induzidas por um novo “Processo de Bolonha”, ministram licenciaturas em “Cosmética, Técnicas Sexuais e Poesia” e doutoramentos em sexo oral; as gorduras, a carne vermelha e o tabaco, ao contrário do que se pensava há duzentos anos atrás, é que são realmente benéficos para a saúde (brilhante provocação à Ciência enquanto coisa contraditória, flutuante, no limite, mentirosa e “desmascarável”).
Politicamente, por sua vez, é um mundo orwelliano (assinale-se que 1984 havia sido publicado em 1949) aquele em que Miles Monroe subitamente acorda, onde tudo é controlado ao pormenor pelo “Grande Líder” (que nunca vemos, a não ser em quadros e fotografias) e as suas omnipresentes forças de segurança, prontas a “reprogramarem” os cérebros de todos aqueles que ousarem transgredir a ordem instituída. O anti-herói Miles – cuja única posição política em vida foi, segundo o próprio, ter passado 24 horas sem comer uvas… – é chamado à vida por um grupo de cientistas rebeldes associados à Resistência (movimento clandestino que se treina nos bosques, quais Robin Hood do futuro) com uma missão muito específica: beneficiando do facto de ser a única pessoa que não está registada nas bases de dados do “Grande Líder” (WikiLeaks? Snowden?), tem de descobrir em que consiste o “Projecto Aires”, que se suspeita ser dirigido à aniquilação total do movimento revolucionário. Saberemos, porém, mais adiante, não se tratar este projecto de outra coisa que não uma forma de tentar solucionar o eterno problema político de qualquer ditadura, ou seja, a sucessão do líder (umas vezes, decidindo-se internamente com a “democracia” que se conhece, como com Estaline na URSS; noutras, recorrendo-se à sempre prática solução “dinastizante”, como em Cuba ou na Coreia do Norte). O “Grande Líder” foi morto numa operação orquestrada pela Resistência e a única coisa que dele sobrou foi o… nariz. Aquando da sua incursão com Luna (giríssima Diane Keaton, como não podia deixar de ser) às instalações do Projecto Aires, Miles, confundido com o cirurgião responsável, ficará, então, a saber que o escopo último é o de tentar clonar o “Grande Líder” a partir justamente do seu nariz – que tema mais futurista, senão o da clonagem, poderia existir quando o filme foi feito (sem prejuízo da actualidade que mantém nos nossos dias)?
Não é por acaso que o regime deste Big Brother é apresentado de um modo perfeitamente asséptico, i.e., desprovido de um pendor mais ou menos de “esquerda” ou de “direita”: este “Grande Líder” poderia ser Estaline, Hitler, Mussolini, Mao, Pol Pot ou Kim Jong-un, outra maneira de significar a obsessão dos homens pelo poder e pelo controlo independentemente da sua cor ideológica. Aliás, sendo este um dos filmes visualmente mais interessantes de Woody Allen, no plano cromático, o Estado (os edifícios, os funcionários, o mobiliário) é sempre – com excepção das forças de segurança, enfiadas em fatos cor-de-laranja – representado em tons higiénicos, clínicos (branco, cinza), precisamente para simbolizar a uniformização do pensamento e a irrelevância de uma concreta ideologia numa ditadura policial. Tudo isto se reconduz, no fundo, ao famoso adágio alleniano segundo o qual “political solutions don’t work”, expressamente verbalizado por Miles no final do filme como forma de declarar não acreditar também na Política (dizendo mesmo, com muita actualidade, que “não interessa quem está no poder, são todos terríveis”).
Importa também compreender como a vigência de uma ditadura como a que preside ao mundo de Sleeper permite, ainda, decifrar outro parti pris do filme, a saber, o de que, pese embora todas as mudanças mais ou menos epidérmicas que a humanidade possa experienciar (os robots, os gadgets, enfim, a tecnologia), o mais fundo da sociedade (a sua infra-estrutura, para utilizar o jargão marxista) não se altera. A obsessão pelo poder e pelo controlo dos homens (e, consequentemente, a asfixia da liberdade) será sempre, por isso, uma constante, e, no reverso da medalha, a oposição a esse estado das coisas terá sempre, também, o mesmo perfil – por isso é que a “Resistência”, passados 200 anos, continua a doutrinar-se n’O Capital, a querer instalar uma ditadura do proletariado e a tentar resolver os problemas do homo psychologicus através de métodos psicanalíticos – como nessa hilária cena em que, depois de Miles ter sido “re-programado”, Luna e o líder da Resistência o tentam recuperar através da reconstituição de uma refeição judaica familiar, que acaba por descambar no momento em que, de súbito, Miles encarna a Blanche DuBois (!!) de A Streetcar Named Desire (Um Eléctrico Chamado Desejo, 1951), de Elia Kazan, muito bem secundado por Luna no célebre papel de Marlon Brando. Ou seja, a convicção de Woody Allen parece ser, muito simplesmente, a de que, independentemente do que, à superfície (na super-estrutura), possa surgir de muito diferente, nós continuaremos a ser sempre os mesmos, com os mesmos problemas, as mesmas neuroses e as mesmas (pseudo) soluções… para o bem e para o mal.
No aqui mais que glosado final de Sleeper, Miles dirá a Luna, para fechar a Santíssima Trindade, não acreditar, também, em Deus (comme il faut). As únicas coisas em que acredita são, diz, o Sexo e a Morte – “duas coisas que só vêm uma vez na vida… sendo que, ao menos, depois da morte, não se sente náuseas”, tirada genial que esconde, porém, o facto de Miles (perdão, Woody Allen) também parecer acreditar, de certo modo, no Amor [impossível não pensar em Love and Death (Nem Guerra, Nem Paz, 1975)], já que é quando Luna lhe afiança que estudos científicos comprovam a existência de uma substância química nos humanos que provoca a irritação entre homens e mulheres ao fim de algum tempo que Miles lhe declara, peremptoriamente, não acreditar na Ciência.
Uma das mais hilariantes comédias de Woody Allen, Sleeper será exibido dia 14 de Janeiro (terça-feira), pelo Cineclube de Guimarães, pelas 21h45, no âmbito do Ciclo “O Futuro do Passado”.