Indicado muitas vezes como o “maior cineasta norte-americano da actualidade” (ultimamente menos), Martin Scorsese é também dos mais influentes, no sentido de que muitos realizadores vieram buscar qualquer coisa ao seu cinema: Quentin Tarantino, o gosto por tecer a banda sonora com canções pop; Paul Thomas Anderson, os longos planos-sequência com a câmara atrás de várias personagens (principalmente, na fase anterior, a dos filmes corais); James Gray, os temas da comunidade e da culpa. Já David O. Russell foi buscar o estilo todo e, desde The Fighter (The Fighter – O Último Round, 2010), parece mais scorsesiano do que Scorsese – American Hustle (Golpada Americana, 2013) é apenas o culminar dessa apropriação. No entanto, à vista deste The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013), um dos grandes candidatos à vitória no concurso de melhor imitador de Martin Scorsese é o próprio.
A verdade é que The Departed (The Departed – Entre Inimigos, 2006) já era um über-Scorsese, uma regurgitação do entusiasmo pelos filmes do italo-americano ingerido em Hong Kong, em que os aspectos visuais e a representação ultrapassavam os níveis regulamentares, aproximando-se muito da (auto-)paródia. Nesse filme, já nem se podia qualificar de overacting a interpretação de Jack Nicholson, era uma performance burlesca e excessiva. Scorsese permitia-lhe até que, num momento, saísse da personagem e fizesse uma careta para o espectador, enquanto tentava distrair o compenetrado Leonardo DiCaprio. Contudo, The Departed era um lapso na década da respeitabilidade de Scorsese (a década da parceria com DiCaprio), em que este tentou por todos os meios alcançar o muito desejado Óscar [a tentativa mais evidente foi o biopic de Howard Hughes, The Aviator (O Aviador, 2004)], que viria a conseguir curiosamente com esse filme (ironias do destino), e tornar-se um cineasta mais agradável (apesar de tudo, Scorsese nunca tinha sido um realizador popular). De resto, DiCaprio, actor de irrepreensível técnica, mas a quem se nota sempre o imenso esforço, é o símbolo da calmaria de Scorsese (assim como o garante de poder continuar a filmar).
The Departed era também a prova cabal de que, por baixo da moderação, continuava a existir uma pulsão maníaca, que, de tanto ser reprimida, ressurgia cada vez com mais força. Ora veja-se: depois dos fervores religiosos de The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988), explodia Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) com o clown psicopata de Joe Pesci e a montagem frenética de Thelma Schoonmaker; depois das regras de etiqueta novecentistas de The Age of Innocence (A Idade da Incência, 1993), Casino (1995), o aprofundar da demência de Goodfellas; depois do zen budista de Kundun (1997), Bringing Out the Dead (Por Um Fio, 1999), uma extraordinária mescla entre Taxi Driver (1976), Afterhours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985) e uma Pietà. The Departed demonstrava também que a tensão entre o pretendente a padre e o homem do discurso incessante e atordoador, entre o cinéfilo benemérito e o cineasta cocaínado, entre a necessidade de aceitação e o repúdio da normalidade nunca ficou totalmente resolvida.
Essa tensão bem poderia ser o motor da obra do cineasta vetusto nos seus últimos anos de glória, mas o que tolhe The Wolf of Wall Street é exactamente a irresolução da dita. Pela primeira vez, em vez de desregramento, há tão-só o seu simulacro (na medida em que The Departed teria muito pose, mas ainda o seu quê de loucura). Pela primeira vez, o despautério é temperado, como se Scorsese já não tivesse energia para assumi-lo seu, restando-lhe apenas representá-lo. Por mais palavrões (mais de 500, numa média de 2,81 por minuto, um recorde em obras de ficção), drogas (quaaludes e cocaína), sexo (a solo, aos pares, em grupo), deboche (prostitutas e estupefacientes no horário de expediente) desvarios (lançar anões contra alvos ou navegar iates no meio de tempestades) e demais des- que apresente, por muito que seja o Goodfellas em Wall Street (a mesma estrutura de ascensão e queda, de encadeamento e atropelamento; o voice over e o protagonista a falar para a câmara; planos e ideias idênticos; os trinta minutos finais do filme de 1990 esticados em três horas imparáveis e esgotantes), The Wolf of Wall Street está aquém do próprio inferno. Desde Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973) e Taxi Driver, que os filmes “eram” o inferno, os pesadelos lúcidos de Scorsese. Agora, este contenta-se em ser seu espectador, igualando Jonah Hill a masturbar-se frente a uma mulher escultural (com uma pila artificial e suspeitosamente grande).
Pegue-se na cena em que o quaalude vintage deixa DiCaprio literalmente a rastejar, porque é exemplificativa. Na página, é genial (embora os elogios ao argumento de Terence Winter sejam exagerados), esboçando um paralelismo com a sequência em que o mundo de Ray Liotta rui à sua volta em Goodfellas. O espectador ri-se, compadece-se talvez, mas não se enerva, não sente o caos a organizar-se num destino irremediável. A câmara filma de cima, sobranceira, condescendente, e não permite a identificação com o medo. Prefere o slapstick.
Poderá culpar-se o competente DiCaprio, por lhe faltar carisma para carregar às costas aquelas três horas insuportáveis (e sonhar que o geek obnóxio de Hill – a par do bolsista chupado pela ganância de Matthew McConaughey, a personagem verdadeiramente carismática do conjunto – fosse o protagonista), o argumento meio frouxo de Winter, a montagem velocíssima de Schoonmaker (que teve de cortar uma hora ao “director’s cut”), o uso preguiçoso de canções pop (Foo Fighters e Lemonheads porque a acção decorre na década de 90), um tópico tão topical (DiCaprio prediz a crise financeira de 2008 e tudo), as amarras dos estúdios que obrigam a inúmeras cedências. Desculpas de mau pagador ou de fiel scorsesiano. O criminoso é a vítima: Martin Scorsese. Imitação por imitação, mais vale o anúncio para a Dolce & Gabbana.