O título da segunda longa-metragem de J.C. Chandor pode ser considerado um desmancha-prazeres (vulgo, spoiler) e será essa a primeira instância em que o realizador quebra uma “regra dourada” do cinema. A primeira cena de All is Lost (Quando Tudo Está Perdido, 2013) confirma essa ideia: o filme começa exactamente por esse momento em que “all is lost” e a restante hora e meia é assim uma analepse (vulgo, flashback) da qual já se conhece o desfecho (ou, pelo menos, esse desfecho). Nesse sentido, aquele “quando” da tradução portuguesa do título diz mais e menos do que o original (mas é garantidamente diferente). Como já se percebeu, será muito complicado escrever sobre este filme evitando desmancha-prazeres (vulgo, spoilers). Fica o aviso.
No entanto, repetindo o que escrevi no primeiro parágrafo, o título revelador (o desmancha-prazeres-vulgo-spoiler é um dos maiores pecados que quem vê cinema, seja simples espectador ou, muito pior, crítico, pode cometer – há quem exija que o acto seja punido legalmente, o que faz todo o sentido) é tão-só a primeira manobra para baralhar o espectador médio de cinema americano actual (ou um espectador habitual do habitual cinema americano que se faz hoje em dia, para ser mais exacto e menos ofensivo). Explico-me: contrariando a corrente dominante que dita que se deve conhecer toda a vida das personagens até à acção se iniciar (veja-se como qualquer remake acrescenta quinze minutos ao início do original), All is Lost expele toda a informação desnecessária, costumeiramente conhecida como backstory, que normalmente surge no que se chama exposition (não traduzo a palavra literalmente, porque não é bem a mesma coisa). Nada se sabe da personagem interpretada por Robert Redford, nem o seu nome (no genérico final é creditado como Our Man), nem o seu passado, nem porque está ali e não acolá, até porque a acção começa no exacto momento do “acidente” que a ditará. Apenas se percebe que tem família, a quem escreve uma mensagem, cujo conteúdo é lido em voice-over na tal primeira cena, a única instância em que se ouve o actor falar, tirando uns impropérios e exclamações (que não formam propriamente um discurso). O facto de All is Lost não ter diálogos explica porque tem tão pouca exposition – que, ainda assim, vai sendo dada através de pormenores, como uma prenda de aniversário por abrir – e é explicado pelo facto de Redford estar literalmente sozinho durante hora e meia (a outra “presença humana” materializa-se numa mão).
Ora, estas mesmas características vão contra o que o tal espectador médio está à espera (na verdade, do que qualquer espectador está à espera), provocando em alguns um desagrado que só pode advir de frustração (de expectativas): há os que não conseguem “identificar-se” com a personagem por não lhe conhecerem o passado; outros aborrecem-se com a presença única e silenciosa de Redford num cenário mais ou menos confinado (um iate ou um salva-vidas são espaços reduzidos, só que, para lá deles, há a imensidão do mar); há os que se repugnam com o corpo envelhecido do actor, pouco acostumados a encontrar protagonistas de 77 anos num ecrã de cinema; outros, ainda, obcecam-se com a verosimilhança de cada gesto, ou porque um velejador não faria aquilo ou porque uma pessoa numa situação de risco não agiria assim (o natura-realismo é, talvez, a maior armadilha do cinema actual – chega-se a julgar a qualidade de uma obra pela sua adesão à “realidade”). Elogiar um filme por pôr assim em causa o espectador será pueril mas, quando este é apaparicado em quase todos os géneros de todas as cinematografias, não deixa de ser louvável quando, parafraseando o título português de All is Lost, o tudo que está perdido se revela excrescência.
Contudo, o filme não passaria de um exercício interessante mas vazio se fosse só isso. A forma de All is Lost serve os objectivos de J.C. Chandor: criar uma alegoria mais ou menos óbvia do capitalismo [é debatível que esse seja o intento de Chandor, mas o seu filme anterior sobre o colapso financeiro de 2008, Margin Call (O Dia Antes do Fim, 2011) é um argumento a favor da ideia]. Assim, Our Man (o “nosso homem”, o homem normal, o espectador médio, nós), náufrago devido a um choque com um contentor cheio de ténis (provavelmente cosidos por adolescentes do Terceiro Mundo para os do Primeiro Mundo calçarem) largado por um cargueiro qualquer (ah, a globalização), anda à deriva no meio do oceano, sem que ninguém o ajude, sem conseguir comunicar ou sair da sua dramática situação. A dada altura, passam dois cargueiros que não o vêem, apesar de todas as tentativas de se tornar visível. Noutra, no instante em que finalmente um peixe morde o anzol que deitou à água, um tubarão come o dito (ninguém disse que Chandor era subtil). Mais do que do destino, Our Man é vítima de um sistema. E, no entanto, continua a comportar-se com a compostura necessária: faz a barba, remedeia como pode o seu barquito, sobrevive a uma despromoção para salva-vidas, tenta aparentar uma normalidade impossível. É certo que, por vezes, desespera, grita um “Fuck!” bem audível (ou será que uma voz isolada no mar imenso faz algum som?), mas só nos instantes finais, quando tudo está perdido (e é curioso que certos manuais de escrita de argumento cataloguem aquele momento em que tudo corre mal ao protagonista, antes da redenção ou da reviravolta, ali no final do segundo acto, como “all is lost”), desiste. Para este espectador (médio defensivo, vulgo, trinco raçudo), essa espécie de transcendentalidade (pretendida ou não), de que só anulando-se um homem pode reemergir são e salvo, é mais interessante do que a possível alegoria. Assim como são a interpretação contida de Robert Redford, que suporta, sem aparente esforço (de representação, entenda-se – o corpo de Redford é ele mesmo a marca de vários esforços), um filme inteiro (foi John Ford quem disse que a melhor paisagem era um rosto?), e o argumento e a realização de Chandor, que evitam todos os escolhos em que Danny Boyle encalhou quando se viu obrigado a filmar alguém confinado a um espaço reduzido [James Franco em 127 Hours (127 Horas, 2010)]: não há visões ou alucinações, nem voice-overs ou flashbacks a eito; Chandor cumpre o seu programa formal rigorosamente.