Desengane-se quem pense que a longa linhagem de documentários “sérios” sobre o Holocausto, que inclui obras tão distintas como Le chagrin et la pitié (Tristeza e Compaixão, 1969) de Marcel Ophüls, Shoah (1985) de Claude Lanzmann ou Paragraph 175 (2000) de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, começou com o mítico Nuit et brouillard (1955) de Alain Resnais. Apesar de este filme ser a primeira tentativa digerida de pensar audiovisualmente os massacres ocorridos às mãos dos nazis, muitos metros de película correram em torno deste tema nos dez anos que mediaram entre a descoberta dos campos de concentração e a realização da curta-metragem de Resnais. Entre eles, aqueles que serão, porventura, mais interessantes do ponto de vista artístico e historiográfico serão os que serviram, logo em 1945, para compor as primeiras obras cinematográficas sobre o tema. No seguimento do estrondoso anúncio do futuro (re)lançamento de Memory of the Camps (2014), um filme praticamente desconhecido com supervisão, em grau ainda por apurar, de Alfred Hitchcock, e composto de imagens recolhidas em 1945 nos campos de concentração, não há momento mais propício para recordar o trabalho análogo levado a cabo por Billy Wilder no mesmo ano: Death Mills (1945), ou Die Todesmühlen na versão alemã, esta sob a direcção de Hanus Burger.
Geoffrey Macnab, jornalista cultural do The Independent, explicou a raridade do filme de Hitchcock pela própria rejeição do autor, chocado com a realidade do material que tinha entre mãos: “It’s a little known fact that the great director made a film about the Nazi death camps – but, horrified by the footage he saw, the documentary was never shown”. Death Mills, por sua vez, é um “raro” não pelo afastamento autoral de Wilder (embora ele tenha, em certa medida, exisitido), mas pela natureza institucional do projecto, que justifica, entre outros aspectos, a ausência de qualquer referência pessoal (Wilder, filho de judeus alemães, tinha perdido grande parte da família nos campos de concentração nazis) e a advertência que abre e fecha a curta-metragem: “This film will not be shown to the general public without permission of the War Department”. O filme está agora no domínio público e, como tal, pode ser visto fora do seu âmbito pedagógico, que o nutrira na sua génese (e que tinha implicado a criação das duas bandas sonoras distintas, a inglesa e a alemã). Wilder, no entanto, acredita que essa ambição, a de confrontar o povo alemão com as atrocidades do governo nazi que tinha eleito e apoiado, não foi concretizada. No seu documentário sobre o autor Billy Wilder, wie haben Sie’s gemacht? (1992), ouvimos Volker Schlöndorff dizer: “They [os Alemães] couldn’t cope with it. He [Wilder] told me people just left the screening or closed their eyes. They didn’t want to see”.
Do ponto de vista histórico, estamos, assim, perante um objecto profundamente misterioso, de difícil classificação. Por um lado, sentimos o peso da produção pela U.S. Army Signal Corps e, consequentemente, a batuta da máquina propagandística de guerra, minuciosamente construída pelos Estados Unidos nos anos 40 para incutir nos seus combatentes pujança moral ou para os alertar contra perigos específicos que poderiam encontrar durante o conflito. A parentalidade de filmes como Sex Hygiene (1942) de John Ford e Otto Brower, Our Russian Front (A nossa frente russsa, 1942) de Lewis Milestone e Joris Ivens ou Prelude to War (1942) de Frank Capra e Anatole Litvak (o primeiro tomo da série “Why We Fight”), faz-se sentir em Death Mills através da voz-off condutora, oscilante entre o registo jornalístico e o político, bem como de outros elementos composicionais, nomeadamente a música tonitruante e repetitiva. Por outro lado, a narração é confusa e fragmentada, tentando [à semelhança do que viria a fazer Al Reinert, muito mais tarde, em For All Mankind (1989)], compor um só relato a partir de imagens de múltiplas ocorrências do mesmo fenómeno, captadas por operadores diferentes em momentos diversos. Mais do que um registo histórico rigoroso, Death Mills é, assim, uma reacção, em estado de choque, a uma realidade brutal, cujos contornos só se conheceram verdadeiramente no momento em que as sequências foram geradas. O próprio Billy Wilder descreve assim a sua experiência durante a rodagem: “I have never forgotten one image: a field of bodies and, sitting on a corpse, a dying man – the only one still moving. He was looking into the camera. He turns, gets up slowly, and falls over… dead. Hundreds of bodies!”.
O resultado é, logo, um discorrer de semas imagéticos da violência, encarnados nas figuras dos corpos dos mortos e nos rostos de sofrimento dos sobreviventes. O olhar directo para a câmara dos que foram salvos pelos Aliados nos campos de concentração, carregando o espanto perante a libertação ou somente uma estupefacção assombrosa, é um espelho daqueles que os filmam, tentando timidamente conceber um discurso visual sobre uma realidade que os ultrapassa. Esta constatação ontológica leva-nos então à questão: que interesse cinematográfico pode ter, para nós, Death Mills? A brutalidade e crueza dos planos da obra, que são um resultado do que é filmado, mas também de como é filmado, violentam diegeticamente todas as formas encontradas na pós-produção para as controlar, nomeadamente a voz-off e a montagem, de que Wilder é, como sabemos, o responsável. Nem todas as imagens foram recolhidas com esta pureza de anestesia emocional, como nos mostra a conclusão do plano em que os habitantes de Weimar, obrigados pelos Americanos a visitar as instalações de Buchenwald, são filmados a sair de um edifício central do campo: uma panorâmica vertical para não deixar escapar o nome da rua por onde irão passar: Adolf Hitler-Straße. Outros momentos, porém, não conseguem camuflar a ausência de preparação emocional dos que primeiro se aperceberam dos abjectos contornos daquilo que a voz-off não hesita em classificar como “the worst mass murder in human history”. Talvez o exemplo mais significativo desta segunda categoria sejam as intermináveis panorâmicas horizontais sobre os amontoados de mortos, onde as linhas dos corpos e dos rostos em putrefacção se confundem, dando origem a representações, praticamente abstractas, de uma calma infernal e insuportável. Elas serviriam a Wilder para, num catálogo funesto, descrever os tipos de morte praticados em cada campo de concentração, e viriam a ser colocadas numa cuidada antinomia plástica com a exaltação e entusiasmo das sequências do congresso de Nuremberga, possivelmente extraídas de material pertencente a Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade, 1935) ou a Tag der Freiheit – Unsere Wehrmacht (1935) de Leni Riefenstahl.
Yann, um dos mais conceituados argumentistas da banda desenhada franco-belga contemporânea e autor do recente Gringos Locos, cita o mestre como influência suprema, pensando naquela que considera ser a sua lição narrativa essencial: “em todo o drama há uma comédia”. Death Mills é, assim, uma obra atípica e excepcional na filmografia do autor, como, aliás, seriam todos os filmes propagandísticos realizados por Capra e Litvak, Ford ou Hitchcock: nele não encontramos nenhuma das características do método e estilo do realizador de Sunset Blvd. (Crepúsculo dos Deuses, 1950) e Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959). Para quem, em 1945, descobre o Holocausto, não há, por defeito, comédia possível. Estamos ainda longe dos tempos que verão nascer, após a historicização do conflito e da shoá, os satíricos romances anti-militaristas, ao gosto do humor negro e do absurdo, de Joseph Heller (Catch-22, 1961) e de Richard Hooker (MASH: A Novel About Three Army Doctors, 1968). E, não esqueçamos, The Great Dictator (O Grande Ditador, 1940) de Charles Chaplin foi realizado antes de qualquer conhecimento público daquilo que se passava nestes campos de genocídio. Death Mills é, portanto, um bastião de austeridade, e nunca Wilder voltará a abraçar, mesmo nos seus filmes mais graves como The Lost Weekend (Farrapo Humano, 1945) ou Ace in the Hole (O Grande Carnaval, 1951), um projecto onde o humor esteja absolutamente proscrito. No filme de Volker Schlondörff, Wilder justifica o aparente fracasso do projecto de Death Mills com a impossibilidade de trabalhar um tema deste cariz com imagens reais, tão irrevogavelmente selvagens, explicando que foi isso que o motivou para a realização de uma ficção, três anos depois, sobre a Segunda Guerra Mundial: A Foreign Affair (A Sua Melhor Missão, 1948). A curta-metragem de Wilder fica, contudo, como um documentário sobre si mesma, antologizando não só a realidade chocante dos campos de concentração acabados de descobrir como a perturbação daqueles que pela primeira vez a filmaram. Antes de Nuit et brouillard, que introduzirá todo um outro mundo à reflexão cinematográfica sobre o Mal, temos isto: imagens bárbaras para retratar a barbárie.