No programa sobre bola Grande Área, a RTP Informação abre uma janela (ou devemos antes dizer “janelita”?) para a situação de batalha campal na Praça da Independência em Kiev, dentro da qual se (sobre)impõe o cerco marciano de John Carpenter’s Ghosts of Mars (Os Fantasmas de Marte, 2001)
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Confesso que quando vi pela 1.ª vez a referência a este caso, julguei estar perante um trabalho de edição de alguém com fraco sentido de humor, que não era uma situação real e em breve haveria um desmentido.
Mas se isto ocorreu de facto, estamos perante um novo estádio de infotainment, e dada a situação em Kiev, de péssimo gosto, devo acrescentar.
Como se já não fosse suficiente o ridículo de uma “janela” naquele tipo de programa, cujo público-alvo não tem em geral interesse por questões de política internacional, mesmo se estas atingem uma certa gravidade. Daí o alinhamento dos noticiários dos canais generalistas (ou aquilo que lhe quiserem chamar…), colocarem de forma sistemática temas dessa categoria, quase no fim dos alinhamentos, apenas antecedendo notícias de temática cultural.
Foi assim, exactamente. Naturalmente que só acrescento o “Fantasmas de Marte” para acentuar o absurdo: podia estar a chegar, “lá fora”, o dia do Juízo Final que, nas instalações da RTP, para todo o país, se estaria a discutir as possibilidades do Futebol Clube do Porto na Liga Europa. A imoralidade tem atingido, de modo inaceitável, um certo jornalismo nacional. Também sugeria que os cidadãos começassem a reflectir criticamente sobre o modo como é gerida a agenda pública pelos ditos jornalistas da nossa televisão, nomeadamente a dita de serviço público (que serviço? Que público?). O péssimo jornalismo que se continua a praticar nas nossas televisões e jornais só pode ser o resultado, nesta altura, da falta de sentido crítico dos próprios espectadores, que vão tornando a “classe jornalística” na mais moralmente imune e social e politicamente desresponsabilizada do nosso país.
Mas afinal aquela justaposição de imagens foi feita por si? Não era preciso ter chegado a tanto…
De resto, concordo consigo e sem querer deprimi-lo, e aos leitores deste site, devo confirmar que nos cursos de jornalismo, a ética jornalista é já considerada como uma espécie de Santo Graal, que se deve seguir, mas apenas se tal não colocar em causa audiências, ou seja, a sobrevivência económica do jornal, ou do canal televisivo. Resumindo, reportar o mundo de forma sóbria e racional, sem sensacionalismo e histerismo não rende. Alguém disse que “the revolution will not be televised…”, mas na verdade qualquer revolução terá imensa cobertura, para tal só precisa de ser “espectacular” quanto baste, in Hollywood style.
Sim, nesta rubrica, Estado da Arte, cruzamos imagens do cinema com imagens da actualidade mediática. Concordo com o que diz – sou licenciado em Comunicação Social e devo dizer que, na minha formação, foi dada ênfase à deontologia, mas depois o que vou vendo na prática é, imediatamente, deitar borda fora qualquer prática eticamente regulada do jornalismo. Posto isto, parece-me que a revolução ucraniana era suficientemente espectacular. O problema no nosso país é a febre futeboleira. A revolução não será televisionada, mesmo se for hollywoodesca (“Fantasmas de Marte” é de Hollywood e confunde-se, pelo que percebo perfeitamente, com as imagens vindas da Ucrânia), se nessa hora estiver previsto mais um dos mil e um talk shows desportivos. Futebol, o ópio deste nosso povo?
Tudo isso está correcto, excepto a última frase… Existe por vezes em Portugal, uma tendência para a nacionalização de defeitos “antropológicos” que são, na verdade, internacionais. A final da Liga dos Campeões ou a Superbowl registam igualmente grandes audiências na Europa ou nos EUA. Apesar de tudo, o “estado mental” nas zonas conhecidas nos EUA por “Bible Belt” são bem mais deprimentes do que em Portugal, a lembrar mesmo certos filmes do J. Carpenter…
Bem, acho que os americanos percebem que o futebol deles é um espectáculo e um jogo. Cá em Portugal a coisa ganha outras dimensões, algumas delas entram no domínio da patologia – e os media alimentam-se escandalosamente disso, vão ao sabor das clubites e dos fanatismos neo-fascistas.
Que os media nacionais parecem viver num estado mental alterado, isso é evidente. No entanto, contactos nos EUA, que também conhecem a nossa realidade, não notam diferenças significativas, apenas uma obsessão mais forte nos EUA por reality shows de so-called celebs.
Além disso, o público está a migrar para outros media e para as redes sociais, e citando um artigo de Pedro Mexia, as ditaduras censuram o politicamente incómodo e as democracias encerram o comercialmente inútil. Concluindo, essa patologia que refere é o resultado da luta por manter audiências que permitam a venda de tempo publicitário, o qual por sua vez valida a sobrevivência dos grupos empresariais de media.