Um dos títulos mais obscuros da filmografia de Fritz Lang, o “psicodrama” gótico House by the River (A Casa à Beira do Rio, 1950) é, também, um dos seus mais fascinantes e sofisticados (não obstante o reduzidíssimo orçamento de produção), pela mestria na composição de um quadro thrillesco em que crime, culpa (e sua permutabilidade, no que o filme se abeira de um tema hitchcockiano clássico), erotismo/fetichismo, desequilíbrio mental e as fronteiras entre arte e realidade concorrem para um dos filmes psicologicamente mais negros e complexos da fase “americana” de Lang, de par com títulos como The Woman in the Window (Suprema Decisão, 1944) ou Secret Beyond the Door… (O Segredo da Porta Fechada, 1947).
O “rio” do título, ou, melhor dizendo, as suas águas – com as quais, aliás, o filme abre magistralmente (quase um minuto e meio a planar pelo rio) –, talvez forneçam a chave definidora do filme: “I hate this river”, comenta, angustiadamente, Mrs. Ambrose, a empregada do escritor Stephen Byrne (Louis Hayward), quando repara num animal que passa a boiar no rio defronte da casa. Ao que Stephen, muito placidamente, lhe responde: “It’s people who should be blamed for the filth, not the river” (tudo com um espantalho sinistro no enquadramento do plano).
A frase tem um alcance profundíssimo (que, numa primeira impressão, pode não transparecer imediatamente): a visão materialista (no sentido filosófico) de responsabilidade moral que lhe está subjacente – não será por acaso que, num lugarejo americano à beira-rio como aquele (conservador, como se supõe), Deus não é invocado, salvo erro, uma única vez, assim se sublinhando a sua ausência/impotência ante a corrupção moral – pretende significar que a culpa pelo que de mal acontece no mundo reside nos comportamentos humanos, e não no acaso ou num qualquer castigo da mão divina. Visão, aliás, que vai de encontro ao desaparecimento de Emily (a sua “ausência” é o dínamo de todo o filme), a nova – e erótica – empregada na casa dos Byrn, que, como o animal das primeiras cenas, também virá a boiar à superfície (embrulhada num saco de sarapilheira, qual “pesado fardo”) daquele hateful river num momento em que, já o sabemos, it’s Stephen we should blame for the filth, not the river…
Só que o lixo é agora um corpo (os homens como “lixo” é uma insinuação irresistivelmente pessimista e languiana, et pour cause), e não um animal, e será no seu encalço que Stephen irá de barco pelo rio fora, molhando-se, i.e., sujando-se com a água, ela própria conspurcada pelo corpo (pelo crime) que ora jaz no fundo do rio, ora vem à tona, como o lixo que vai e vem por efeito da maré, tal qual se havia queixado Mrs. Ambrose no início do filme – como, enfim, o sentimento de culpa (a “consciência pesada”) que vai e vem para perturbar a mente humana. Aqui, a água não “lava tudo”, não regenera; pelo contrário, é uma água viciada, imunda, que esconde segredos macabros.
E é de uma mente profundamente perturbada – embora Lang a contrabalance, trocando as voltas ao espectador, na cena em que, muito ternamente, Stephen poupa a vida a uma aranha – que falamos quando pensamos em Stephen, um escritor frustrado cujos romances vêm sendo sucessivamente recusados pela editora. “Spice them up! (…) That’s what the public wants!”, aconselha-o Mrs. Ambrose. A bem dizer, será precisamente isso que Stephen fará (e com efectivo sucesso, na verdade), não por um ímpeto comercial (vender mais livros), mas porque a realidade, a sua realidade, lhe fornecerá a inspiração e, mais do que isso, os factos concretos que ajudarão ao seu êxito. Deste modo, as fronteiras entre arte e vida, entre fantasia e realidade, esbater-se-ão perigosa e perversamente, e de um peculiar modo duplo: no início do filme, é o real (o assassínio de Emily às mãos de Stephen) que inspirará o romance que está a escrever; já no final do filme, opostamente, Stephen escreverá (fantasiará) primeiro aquilo que posteriormente levará a cabo, embora sem êxito, na sua vida real, isto é, o assassinato do seu irmão. Sobretudo no primeiro caso, o filme abraça um dos grandes temas da Arte, a saber, o seu vampirismo, no sentido do modo como o artista suga (aproveita-se) da realidade para criar – imagem (vampiro) particularmente transponível para a figura egocêntrica e maníaca de Stephen Byrn, que se aproveita de tudo e de todos (sobretudo do seu irmão) para conseguir os seus intentos (i.e., escrever, retirando indirectamente, ao fim e ao cabo, proveitos do crime por si cometido) e lavar as mãos dos vários lodos em que as mete. Fá-lo, aliás, de modo perfeitamente organizado e metódico, outra maneira de sugerir a loucura não enquanto descontrolo e desorientação (como convencionalmente a perspectivamos), mas precisamente o seu contrário, ou seja, como um calculismo, uma frieza e uma rigor doentios ao serviço dos comportamentos mais hediondos.
Começámos por falar na permutabilidade da culpa (de Stephen para o seu irmão John) com um dos punctum crucis nos quais House by the River se aproxima da linhagem hitchcockiana, da qual é ilustrativo, por exemplo, Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951). Mas os parentescos com Sir Alfred não se ficam, de todo, por aí. Desde logo, salta à vista a relevância – explicitamente deduzível do título do filme – da “Casa” neste filme de Fritz Lang e em Psycho (Psico, 1960): em ambos os casos, uma casa gótica (confira-se, a este respeito, a interessantíssima observação de Žižek), ainda que “deformada” por um certo traço expressionista (de desintegração/dissociação moral e psicológica), assume um papel central, por nela terem sido cometidos os crimes entretanto abafados e, consequentemente, por nela habitarem os “fantasmas” dos corpos mortos (Emily e a mãe de Norman Bates). Os próprios interiores das casas se confundem (altas escadarias, corredores estreitíssimos, escuridão predominante), similitude potenciada pelo igualmente similar modo de os filmar (picados e contra-picados que se aproveitam do que de assustador a vertigem das escadas impõe). É igualmente por estas escadas que a duplicidade feminina de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) perpassa o filme de Lang, que filma as cenas de Emily e de Marjorie (a esposa de Stephen) a descer as escadas (no caso de Emily, a descer “ao inferno”, i.e., à sua morte) exactamente do mesmo modo, fabricando um intenso déjà vu na mente do espectador. Outros pormenores avulsos são representativos do enlace entre as estéticas languiana e hitchcockiana: o perfil sociopata de Stephen e de Norman Bates, em Psycho; a presença de animais embalsamados como elementos decorativos em House by the River e em Psycho; as paralisias traumáticas súbitas de Stephen quando vê os peixes (por os associar ao rio onde “afogou” o seu crime), igualmente patentes em Marnie (Marnie, 1964) ou Strangers on a Train; ou a arca-esconderijo utilizada por Stephen para ocultar o corpo de Emily e por Brandon e Phillip para guardarem o seu perfect murder em Rope (A Corda, 1948).
A par desta intrincada teia psicológica e moral, e sem prejuízo do negrume que lhe está associada, House by the River não deixa de ter alguns apontamentos cómicos deliciosos, especialmente, os gags decorrentes dos amores reprimidos que vão pontuando o filme, quer entre Marjorie e John, quer aquele que Flora, a impertinente empregada de John, lhe dedica. O final do filme fará “justiça” – a que parece não existir no julgamento do desaparecimento de Emily, onde o juiz é cego… mas só de um olho – ao comportamento “diabólico” de Stephen, que morrerá, em novo momento “paralisante”, nas escadas (sempre as escadas), enrolado (enforcado) pelos cortinados nos quais surge, fantasmaticamente, a imagem de Emily, como se esta nunca tivesse saído daquela casa. “Emily, Emily! Let me go!”, grita um alucinado Stephen, mas é tarde demais. What goes around comes around.