Hunger (Fome, 2008) é o primeiro filme de Steve McQueen, que até aí se tinha distinguido como artista plástico e visual, chegando a vencer o prestigiante prémio Turner, em 1999. Frequentemente acusado de uma abordagem clínica e calculada sobre os temas que decide abordar nos seus filmes, esses comentários resultam do que pode ser considerado um olhar voyeurista por parte de McQueen, obcecado pelo valor estético das imagens que cria, à procura de uma representação perfeita. Como que um observador distante, mais interessado em apresentar a violência moral dos homens do que as suas emoções, a primazia dada por McQueen à estética em relação aos sentimentos ofusca uma preocupação profundamente humanista, mesmo que pessimista. Não deixa então de ser revelador a importância do gesto de McQueen, pela militância formal de apresentar uma visão intransigente, e em escolher filmar a história de um homem que teve também na importância de um gesto a sua marca de afirmação.
Esta é a história de Bobby Sands, membro do grupo irlandês separatista IRA, condenado em 1977 a catorze anos de prisão por posse ilegal de arma. Dentro dos confins da prisão de Maze, em Belfast, Sands tornar-se-á um dos membros mais activos na luta dos direitos dos reclusos, e em 1981, quatro anos após a retirada aos membros do IRA do estatuto de prisioneiros políticos, e de uma greve de quatro anos de blanket e no wash (recusa de vestir uniforme de presidiário e tomar banho), será responsável por iniciar uma greve de fome como protesto. Mas McQueen demora-se até chegar a Sands no filme (ou melhor, até chegar à incandescência de Michael Fassbender), servindo-se primeiro de duas personagens antagonistas, que funcionarão como guias para a entrada no labirinto da prisão.
Hunger começa com imagens da rotina doméstica de um dos guardas prisionais, da necessidade de ordem com que este lida no seu dia-a-dia, e de um cuidado impecável visível em vários pormenores, que é igual quer seja na atenção dada ao que veste para trabalhar, quer seja na forma como retira os anéis dos dedos antes de espancar os prisioneiros, quer como depois descansa as mãos em água para acalmar as dores e limpar-se do sangue. Esta necessidade de ordem é um mecanismo de defesa, de separação do mundo da prisão com o mundo lá fora, que contrasta com a desordem revoltante das condições que um jovem prisioneiro encontra na chegada à prisão. Rapidamente o mundo deste desaba sobre a sujidade imunda da cela, a falta de condições básicas de higiene, a monotonia do dia perdido, as paredes cobertas por dejetos e os espancamentos rotineiros pelos guardas. Mas McQueen encontra um ponto de contacto entre as duas personagens: na acalmia da neve imaculadamente branca que cai no terraço onde o guarda pausa para um cigarro, que é repetida mais tarde, quando o jovem prisioneiro estica os dedos por uma pequena fenda na vedação da janela da sua cela, para sentir os flocos da neve que caem.
São várias ocasiões durante pequenas sequências em que McQueen aproveita para deter-se sobre imagens que criam uma ideia de unidade formal, mas que reforçam a singularidade de cada momento, quer sejam quadros de uma beleza distópica, quer de uma violência desumana. Desde as já referidas mãos a descansarem em água ou os dedos à procura de luz, até ao rebanho de homens em tronco nu a que se assemelha a missa na prisão, passando pelas cenas em que McQueen explora a sujidade nas celas, e em particular quando arrasta a câmara pelas paredes. Mas não são só as imagens, é também o som que impressiona: o bater das panelas e tachos na rua como protesto com que começa o filme é mais tarde repetido no rufar dos bastões da polícia de choque contra os próprios escudos; e a voz fria de Margaret Tatcher em off lembra um fantasma do passado, enquanto a câmara viaja pelos caminhos escuros da prisão.
São inevitavelmente as cenas de violência que deixam um impacto mais aterrador, pela descrição da brutalidade a que estes reclusos eram sujeitos. Será numa dessas sequências que entrará pela primeira vez na história Bobby Sands, sensivelmente a meio do filme, quando um corpo irreconhecível é arrastado nu pelo chão, para lhe ser cortado o cabelo e depois atirado para uma banheira, que tinge-se de vermelho com o sangue de feridas reabertas. McQueen utiliza por vezes longos takes sem cortes para prolongar o desconforto, e assim enfatizar a dor das personagens. Quando um público está habituado a uma sucessão de cortes quase automatizados, e percebe que aos poucos que isso não está a acontecer, fica ansioso mas incapaz de desviar o olhar – será esse o efeito pretendido por McQueen, repetido em Shame (Vergonha, 2011), quando a personagem principal sai de casa enraivecida para correr, e em 12 Years a Slave (12 Anos Escravo, 2013), quando a personagem principal, ele próprio um escravo, é forçado a chicotear um outro escravo. Na sequência seguinte à aparição de Sands, um pelotão de polícia de choque espanca prisioneiro atrás de prisioneiro, num dos tais planos-sequências que parece não acabar, até que McQueen, num desarmante splitscreen, em que a imagem é dividida ao meio pelas barras de uma cela, mostra o balanço de Hunger: de um lado, polícias atacam cruelmente um prisioneiro indefeso, e do outro lado, um dos polícias refugia-se num canto, enquanto chora. Logo depois Bobby Sands é atirado para o chão da sua cela, ensanguentado e quase inconsciente, e numa das tais imagens-signo de McQueen, este parece querer mostrar-nos a primeira vez que Sands morre, ou pelo menos o momento em que decide que já está morto.
Se os longos planos-sequência servem de âncora às cenas mais violentas, é num desses planos que reside a cena mais importante do filme, um extraordinário plano de dezassete minutos de um simples diálogo, e provavelmente a melhor cena de diálogo da última década. Num plano fixo, que mostra duas personagens sentadas frente a frente em lados opostos de uma mesa, Bobby Sands e o padre da prisão falam sobre a intenção e consequências da greve de fome que Sands está decidido a iniciar. Se o padre argumenta que o que Sands irá fazer é equivalente a suicídio, e que este não está em condições de tomar tal decisão, Sands mostra-se inabalável, numa conversa que apesar do plano único mostra-se incrivelmente tensa. A cena é complementada por um monólogo de Sands sobre um episódio da sua juventude, e com a lente fixa na face de Fassbender à medida que a sua personagem reafirma gradualmente a sua convicção, imaginamos o padre a vê-lo desaparecer lentamente.
A partir do momento em que Sands começa a greve de fome, a câmara que até aí tinha tentado ser objectiva e imparcial, é contagiada com empatia por Sands, e torna-se subjectiva para acompanhar os delírios deste à medida que o seu corpo se deteriora. Qualquer calculismo que poderia até aí ocupar o olhar de McQueen desaparece, para através do olhar sobre o corpo como uma prisão, e o corpo como uma arma, ficar um retrato comovente sobre a desilusão pela solidão extrema de alguém que se deixa desvanecer assim. Se McQueen acredita que nem sempre tudo pode ser belo ou agradável, e que às vezes é preciso atacar o torpor do espectador para o agitar, nas últimas imagens do filme, quando resgata o episódio da juventude que Sands tinha referido com nostalgia, McQueen também parece querer acreditar na esperança que Sands tenha encontrado paz no seu gesto final.
Hunger de Steve McQueen será exibido dia 27 de Fevereiro pelo Cineclube do Porto, na Casa das Artes pelas 21h30.