Quando, contra o mar nocturno, o romance de Jep Gambardella finalmente começa e o filme finalmente termina (spoiler na primeira frase?; mas será possível estragar um filme assim? fica aberta a votação), sei que tudo é um truque. Tudo muito certo é um truque, aliás há mar no tecto do quarto, há girafas evanescentes e flamingos a descansar na varanda antes da migração a comprovar isso mesmo. Mas duas horas e vinte e dois minutos depois não há como não pensar nesta beleza que é grande e que empareda o filme desde aquele plano do céu à noite com as luzes do terraço da festa de anos do escritor e as letras da Martini à direita, até ao segundo momento, final, em que a grande beleza, agora, já é sem néons e tudo está negro e Sorrentino termina as suas prédicas sobre o que é realmente importante e o que são os blá blá blás desta vida. Mas então que beleza é esta que Jep sempre procurou e que nunca achou e que o transformou num escritor que não escreve, presença habitual na noite fashion romana ao estilo Caras? Nestes casos em que é preciso investigar, o melhor é fazer uso dos meus habituais barómetros de beleza, a saber, bolos de chocolate, William Yeats e a Branca de Neve.
Pouco após a apresentação do protagonista de La grande belleza (A Grande Beleza, 2013), ennuyé na decadência das suas festas high society e na sua estagnação criativa, este confessa, como que atormentado, estar destinado à grande sensibilidade. Essa espécie de auto-elogio dissimulado faz do filme de Sorrentino uma busca de algo de “profundo” por entre, ou para além, da desconstrução dos palcos da superficialidade. Estes são as vibrazione da pseudo-artista que Jep entrevista (a sua performance em que cabeceia um muro da Ápia antiga é uma farpa a Marina Abramović), são as reuniões de artistas em que se fala de jazz etíope e penteados “pirandelianos”, são os escritores cheios de convicções desmontáveis como legos ou as crianças, génios contrariadas da action paiting. Mas além desses palcos artísticos há toda a performance social: a dos enterros, a da sedução, das festas com os seus “comboios” de dança que não vão a parte nenhuma. Nesse olhar que vai registando a decadência da vida envolvente como um sinal de “maturidade” há uma ideia que persiste em separar o superficial do profundo, extrair a beleza do caos das vaidades. Mesmo que afinal essa grande bellezza, se diga, não exista, Sorrentino não faz outra coisa que não querer expô-la a contrario assumindo uma posição de um certo pretensiosismo ingénuo. Como se no contra-tipo das imagens de festa e de ridículo, dessa aurea mediocritas estivesse um ideal ascético que fosse preciso desenterrar. E então, aqui vêm os bolos, não é possível deixar de olhar para um bolo de chocolate que se auto-intitula “o melhor bolo de chocolate do mundo” com total desconfiança. O anúncio da beleza como algo visualizável, alcançável, como meta, assim como o anúncio do destino da grande sensibilidade de Jep é o ponto de partida errado para algo que à partida se auto-proclama superior e separado da contingência em que o escritor se move e da qual é parte constituinte.
William Yeats tem um poema sobre a velhice chamado When you are old que fala também da fuga do amor do passado (“how love fled”), da perda de um “soft look”, da adoração verdadeira e falsa da beleza. Mas o mais curioso nesse olhar atrás (“O que há de errado em ser-se nostálgico?”, ouve-se a certa altura no filme) é que o poeta irlandês usa expressões como “slowly read” e “murmur, a little sadly”. O murmúrio levemente triste, a lentidão da leitura fazem parte desse olhar nostálgico e adulto sobre um passado. Ora o que faz da nostalgia de Jep um trucco é precisamente a inabilidade de Sorrentino em articular o registo cómico da decadência da sociedade romana com a passagem, a vagabundagem do escritor por entre uma galeria de personagens anódinas separadas entre os ridículos e os inspiradores. Um bom exemplo desse dualismo fácil está nas “visões de fé”, separadas entre a figura ridícula do cardeal que só fala por receitas de culinária e a santa inspiradora que fala por parábolas e come raízes porque as “raízes são importantes”. Como se a ausência de convicções de Jep esgrimida contra as certezas da sua amiga escritora vendida à televisão só servisse esse diálogo, estando o filme todo ele pejado da mais desmontável das convicções: moldar a procura do escritor numa via sacra do nosso enternecimento pelo seu supremo castigo, o da sensibilidade excessiva. Desta forma, o conteúdo de La Grande Belleza explica-se quase por inteiro nessas mensagens comuns de libertação, como diz a dada altura: “A coisa mais importante que descobri uns dias depois de fazer 65 anos é que não posso perder mais tempo a fazer coisas que não quero fazer.”
Atravancada entre dois ideais fechados, o da suprema decadência e da suprema arte, a realização de Sorrentino parece ter apenas essa tarefa de alavancar a nossa emoção e o nosso riso “superior”, mostrando-se ela como a única “grande bellezza” do filme. Imagino algo do género, quando a bruxa má pergunta ao espelho, “espelho meu, espelho meu há alguém mais bela do que eu?”, ele respondesse: há, sou eu. É um elogio do espelho. A realização do cineasta italiano não dá contudo a ver um reflexo da realidade, dá a ver-se a si próprio como espelho. Assim se explica a constante fluidez da câmara como se movimento=emoção. Ou a sequência em slow motion em que Jep vai ao bar comprar cigarros e contempla a juventude e o adorável do quotidiano. Um truque que na verdade revela: um soft inside para um filme que se vende como tendo um hard outside. Essa fluidez entre a dança dos grotescos e dos sensíveis é orquestrada pela incapacidade do silêncio. É sempre a música, desde as techno-chachadas, às músicas de anúncio de telemóvel, aos momentos lacrimejantes épico-religiosos em modo pseudo-The Tree of Life (A Árvore da Vida, 2011), o que vai cosendo toda esta sedução da nostalgia para um final em que o moto é “reconcilia-te contigo próprio e com a tua arte, antes que morras”.
Nesse vazio há ainda tempo e vontade despropositada de colar tudo isto à história do cinema, em particular ao cinema de Fellini, com a importação de uma ideia de excesso clownesco, o look Mastroianni de Toni Servillo, as cenas na Fontana di Trevi, a personagem de Romano que sai de Roma ou a ideia de uma corrosivo dolce fare niente. Se esta é a obra de maturidade de Paolo Sorrentino, como se vem dizendo (e não esqueçamos que ela começa com um tiro de canhão ao espectador), então ganha peso esta ideia de que o envelhecimento é uma infância ao contrário. No meio de tudo isto, entre as citações de um escritor que nada escreve e nada lê, ressalta a referência a Flaubert que sonhava escrever um livro sobre nada e não conseguiu. Paolo Sorrentino conseguiu: fazer um filme sobre nada, além de si próprio.