A morte do cineasta húngaro Miklós Jancsó é a morte de um vulto da história do cinema. Dos seus 92 anos de vida, mais de 60 foram dedicados ao cinema, numa carreira que começa nos anos 50, com curtas documentais, que entra em novos territórios com a explosão dos cinemas novos no Bloco de Leste e que se vai lentamente apagando dos anos 80 até aos nossos dias (o seu último trabalho data de 2012). O período de maior reconhecimento e até popularidade deve situar-se nos anos 70, aquando da estreia de Még kér a nép (Red Psalm, 1972), filme que vence o prémio de melhor realização em Cannes e que coreografa o Zeitgeist, transformando os ares revolucionários pós-Maio de 68, pré-abrilistas (e daí que o cinema de Miklós Jancsó tenha ambientado culturalmente as tertúlias cinéfilas do Portugal revolucionário), numa dança livre contra a opressão desumanizada da máquina do Poder. Luís Mendonça e Sabrina D. Marques relembram abaixo duas outras obras pouco ou não suficientemente vistas (pelo menos, em Portugal) deste cineasta que, com as palmas das mãos à vista, sempre procurou expor e desmantelar o absurdo da guerra e da violência.
Dos filmes que vi de Miklós Jancsó – não tantos quanto gostaria -, Így jöttem (My Way Home, 1965) é aquele onde o gesto do realizador melhor acompanha o natural ou não-tão-natural-quanto-isso desenrolar da história. Que história?, perguntará o espectador melhor informado sobre o cinema do húngaro, perito em despir os seus filmes de enfeites dramáticos ou digressões anedóticas na narrativa. O cinema de Jancsó é como as planícies húngaras que a sua câmara sempre se deleitou em percorrer, por ar como por terra, em travellings que tanto lhe davam asas de anjo como lhe conferiam a omnipotência de um olho instrumental, totalitário, indiferenciador, amoral… (supressor) de Deus. Encontramos aqui uma fotografia em profundidade a pretos acinzentados e brancos cor de cal, usando o formato largo e esticando ao limite a encenação do tal travelling, instituição que faz escola em Jancsó e que terá influenciado cineastas como Jean-Luc Godard, Philippe Garrel e, o seu mais directo sucessor, Béla Tarr. Todos estes elementos fazem parte do ADN – e a sua verdadeira história está ou é, de facto, esse dispositivo formal afinado até à mais pura ou impura das formas fílmicas – de filmes como Csillagosok, katonák (Vermelhos e Brancos, 1967) e Szegénylegények (Os Oprimidos, 1966), que com este Így jöttem formam uma espécie de trilogia sobre a aleatoriedade da violência em tempos de guerra.
Apesar deste sentido implacável de unidade, que percorre uma parte do cinema de Jancsó, Így jöttem reserva uma ideia de inocência, talvez atribuível ao facto de ser uma das primeiras ficções na sua filmografia. Esta história desenrolada entre as barricadas da Segunda Guerra Mundial tem no centro um rapaz húngaro, de apenas 17 anos, que vai sendo empurrado “para um lado e para o outro” enquanto procura acertar no caminho de volta a casa. A câmara de Jancsó mostra-nos os vários “desvios de percurso” que o nosso silencioso e infeliz herói – herói da inocência, a inocência da idade, talvez a mais pura – vai enfrentando como se a História fosse esse vento que sopra, indeciso, para todas as direcções ao mesmo tempo. A certa altura, a acção parece (re)pousar numa morada. Essa morada é como que um imprevisto Éden gerado neste planalto sem fuga possível, onde tudo é visto, onde tudo é visão, onde nada escapa ao poder da suprema arte da guerra – e, por isso, tantas vezes a bela e terrível técnica cinematográfica se confunde com a própria matéria em Jancsó. O rapaz húngaro descobre a liberdade, a única possível, na relação de amizade que nasce, espontânea, não programada ou programaticamente, junto de um “seu igual” russo. As divisões políticas e históricas sucumbem, por instantes, à pureza desta união. Definitivamente, o aparato Jancsó não se faz apenas de tormentos nihilistas.
Luís Mendonça
O legado de Miklos Jancsó, mestre húngaro do cinema, é único e difícil de categorizar. A realização sempre se encontrou com a coreografia, e planos-sequência arquitectados com distintiva destreza acompanham narrativas soltas numa navegação ímpar do tempo, onde os gestos duram e a acção se distende. O estilo depurado de Jancsó está ao serviço da sua verdade, e o ponto de vista politizado é assertivo: a um princípio de libertação das dominações estéticas e formais corresponde uma libertação social profunda.
Csillagosok, katonák, extraordinário filme para redescobrir, é um exemplo paradigmático de uma voz subversiva que grita através do símbolo, sempre encarando o cinema como uma arma ao serviço de uma luta estrutural. Apesar deste filme de época ter sido comissariado para celebrar o 50.º aniversário da Revolução Russa, numa co-produção russo-húngara, não será épico como se esperaria de um filme de guerra e muito menos se constrói entre personagens heróicas e enredos de estratégia. É, pelo contrário, um meticuloso exercício laboratorial que demonstra o absurdo da guerra sem tomar qualquer das partes. Numa meditação estilizada sobre o exercício do poder, uma avaliação crua da guerra como esgotamento da sociedade de onde o livre arbítrio se ausenta e as acções individuais se reduzem à vacuidade de um quadriculamento de hierarquias. Entre czaristas e comunistas. Entre homens e mulheres. Entre militares e civis. Entre russos e húngaros. Entre patentes do mesmo exército.
Em Még kér a nép, um exercício semelhante de composição operática como crítica à opressão pelas estruturas de poder, numa parábola acerca da rebelião dos camponeses húngaros em 1890 contra os latifundiários e contra a Igreja. A ênfase da palavra como veículo revolucionário está imediatamente enunciada no título – as realidades recém-libertadas procuram novas legendas. Contra a opressão e apesar desta, há uma força uníssona que flui da repetição da dança, do salmo, do hino, da canção, da poesia.
Hipnóticos filmes vermelhos desviados de compromissos narrativos, experiências sinestésicas que Jancsó assina com radicalismo e liberdade, num cinema-emblema da emancipação social.
Sabrina D. Marques