Consenso transatlântico: Nebraska (2013) é o melhor filme que Alexander Payne fez em vários anos. Isto é o que leio nos textos de tão prezados (e admirados) críticos como Richard Brody, A. O. Scott ou J. Hoberman. Mas visto o filme não sou capaz de ultrapassar esse facto inegável de que em Nebraska repete-se todo o cinema de Payne – isto é, partindo do pressuposto de que o filme é melhor que os últimos, não é certo que essa melhoria acrescente o que quer que seja ao cinema do realizador americano. Mais do que um novo movimento, Nebraska representa um aprimoramento da coreografia que vamos vendo ensaiada à cadência de um filme a cada três anos.
Por isto mesmo faço das palavras de outros (a propósito de também outros filmes do realizador) as minhas: Nebraska é uma “comédia sacada ao desconforto“, uma “história de desespero surdo“, no fundo uma prova de que o “‘mainstream’ pode renovar-se com talento” naquilo que é cinema para um “espectador adulto“. Dá pois a sensação que visto um dos seus filmes já os vimos todos, ou pior, que escrever sobre o cinema de Alexander Payne é apenas repetir todas as ideias que os seus primeiros filmes correctamente prometeram.
Em particular podemos ver este Nebraska como a continuação – mais de uma década depois – de About Schmidt (As Confissões de Schmidt, 2002) dado que o próprio Jack Nicholson foi considerado para o papel principal e a sua mulher nesse filme é aqui de novo a mulher do protagonista (June Squibb). Foi também com esse filme de início do milénio que o realizador pela última vez filmou a sua terra natal que dá nome ao filme que agora se estreia e de novo retoma-se a personagem de um velho aposentado em modo road movie num regresso a um passado perdido pelas atribulações da vida (e também de novo visitamos uma família asquerosa e sanguessuga de dinheiro e não falta a velhota espevitada e atrevida). O que muda é que se Schmidt era um recém aposentado, lúcido e incapaz de se acomodar à forma côncava do sofá, este Woody Grant (interpretado por Bruce Dern) já está senil e com evidentes dificuldades de locomoção – devido às horas que terá passado defronte do televisor (?). Nesse sentido podemos imaginar o que terão sido estes dez anos que separam as duas personagens (que são no fundo a mesma só que mais envelhecida) e de como já em About Schmidt encontrávamos os indícios do declínio encaminhado a uma inocência aluada (he just believes what people tell him). Por exemplo, enquanto Schmidt se encantava pelo poder manipulador de um anúncio televisivo para ajudar crianças esfomeadas em África, Grant deixa-se igualmente ludibriar por um panfleto enganador que lhe chega no correio e em ambos os filmes esses desaguisados publicitários são aquilo que propulsiona a acção (as cartas a Ndugu Umbo motivavam a narração off no primeiro e neste Nebraska é com vista a levantar um fictício milhão de dólares que pai e filho se põem em andamento).
Quando referia no início o apuramento do trabalho de Payne pensava em particular na forma como neste último filme o realizador já é capaz de recusar esse motor a diesel que é a narração constante e de se libertar da moleta de uma banda sonora impositiva, passando a filmar os homens na paisagem como se fossem eles também partes dos locais – dá a sensação que cada um daqueles habitantes é tão crespo como a árvore que sombreia as suas casas ou as pedras que desenham o caminho até à porta da entrada.
Como sequência-resumo de todo o filme (e num certo sentido de toda a obra de Payne) o filme começa com um homem caminhando na berma da auto-estrada – lá muito ao longe. A câmara filma-o sempre com bastante distância até que surge um polícia que pára o seu carro junto do homem (velho e corcunda) e o interroga, de onde vem o senhor?, o homem sem fôlego aponta para trás, e para onde vai?, e o homem aponta para a frente, sempre caminhando, sempre com dificuldade. Esta é a chave do filme: um desejo de partir (de ir sempre em frente) sem nunca ter a ambição de chegar a parte nenhuma. Nebraska é portanto um filme sobre o sentido horizontal (que acompanha o ecrã largo que o enquadra) que se constrói sobre o movimento dos olhos que acompanham a paisagem do lado de lá da janela do carro (veja-se a lindíssima cena final do filme – toda vidrada no olhar que acompanha o carro que passa e no condutor que vê tudo passando).
A certa altura uns personagens perguntam quanto tempo demorou a viagem e espantados com a demora (porque houve várias paragens como em qualquer road movie) exclamam jocosamente que devem ter vindo guiando em marcha à ré – sem o saberem eles esclarecem-nos sobre o sentido da viagem. Se de facto caminham sempre em frente os protagonistas aproximam-se cada vez mais de um passado que um quer esquecer (ou já esqueceu, o pai) e outro quer conhecer (o filho, Will Forte). E como o passado é coisa de documento (porque o que guardamos de memória se perde com facilidade), são a sequência no jornal local ou no cemitério que tomam forma de porta aberta para um tempo em vias de desmoronamento. Os construtores do passado já estão demasiado cansados para o manterem de pé e por isso ele cai em ruínas como a casa de infância de Woody Grant – construída pelas próprias mãos, desfaz-se agora por abandono. Once I am dead and everyone who knew me dies too, it will be as though I never existed.