A crónica Civic TV continua atenta às coincidências e descoincidências que minam alguma da nossa cada vez mais raquítica programação cinematográfica. Já falámos sobre coincidências autorais, quando três canais diferentes passaram três filmes de Blake Edwards no espaço de um mês, e já esmiuçámos a hipótese da televisão pública (sobretudo esta, entenda-se) articular os filmes que exibe com as incidências da actualidade jornalística – um interessante caso em que o fictício complementa, e explicita?, o factual. Venho agora dar nota de um novo tipo de coincidência, que se foi construindo entre mim, o filme The Thomas Crown Affair (O Caso Thomas Crown, 1999), o seu autor, John McTiernan, e dois eventos que, correlacionados, marcarão a agenda pública, não a da actualidade mediática que enche os nossos jornais, mas aquela que se ocupa dos assuntos cinéfilos. É que, em breve, McTiernan sai da prisão e, também num futuro próximo, espera-se que dele saia um filme intitulado Red Squad.
No dia 30 de Janeiro, no evento Uma Visita Guiada ao Museu no Cinema, ciclo de cinema onde participei na qualidade de organizador, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa exibiu e debateu o filme The Thomas Crown Affair. Não o original de Norman Jewison, lançado em 1968, mas o seu remake assinado pelo especialista do cinema de acção (que tipo de acção? Já lá vou…) John McTiernan. Durante o evento, fomos criticados – entretanto, com o intuito de destruir o meu bom-nome e ganhar algo com isso, imputaram-me acusações de plágio, pirataria e outras imoralidades – por não termos entrado em contacto com os realizadores dos filmes que mostrámos e quisemos mostrar, obviamente, em DVDs originais. Esclareço que, se calhar mais para o mal do que para o bem, esse tipo de contactos não é uma prática corrente no espaço universitário, em eventos da dimensão (sem um cêntimo de orçamento) e com as intenções deste que pusemos em marcha (intenções estritamente pedagógicas, de canalização de investigação académica já feita dentro da faculdade para um contexto de debate livre, onde os filmes são lidos e dados a ler, sobretudo aos alunos, como textos).
Face à hipótese dessa desejável – mas, a todos os níveis, inviável – solicitação, McTiernan aparecia como um caso quase tão difícil quanto o de um Roberto Rossellini, presente no ciclo com Viaggio in Italia (Viagem em Itália ,1954). Se Rossellini faleceu em 1977, McTiernan parece ter assassinado a sua carreira em 2002, com esse fiasco monumental chamado Rollerball (2002), por sinal novo remake de um “clássico” de Norman Jewison. Mas não foi apenas um “assassínio de carreira”, já que – para piorar – da experiência desse filme resultou uma pena de prisão de um ano para o cineasta. O caso é digno de um filme de Hollywood: McTiernan terá mentido ao FBI a propósito de umas escutas ilegais, de que foi mandante, ao produtor de Rollerball, Charles Roven.
Já conhecemos casos de ex-presidentes de Câmara que mantêm as suas ambições políticas mesmo vivendo atrás das grades, mas um realizador privado da sua liberdade é um caso que não oferece grandes chances: a este, ao seu cinema e… à possibilidade de avalizar um ciclo universitário em Lisboa. De qualquer modo, a exibição do filme foi um bom pretexto para anteciparmos o Dia D que se avizinha: preso desde 3 de Abril de 2013, McTiernan está a dias de se tornar, de novo, num homem livre. No Facebook, uma página de fãs faz diariamente o countdown, num crescendo de excitação à medida que o tempo avança e o grande dia se aproxima.
No caso particular do meu ciclo, a homenagem foi involuntária, tal como deverá ter sido a do canal Hollywood, que, numa coincidência extraordinária, passou The Thomas Crown Affair no dia em que nós o exibimos na faculdade (o filme volta a passar na mesma estação, dia 24 deste mês, próxima segunda-feira, às 19h35). Juntando-se a todo este rol de coincidências ou descoincidências, que parecem desde já participar num secreto anseio colectivo pela libertação do realizador norte-americano, a Cinemateca Portuguesa passou, por duas vezes, o seu maldito Rollerball. Posto isto, parece claro que McTiernan tem ainda (ou nunca teve tanto) espaço na nossa vida. Cereja no topo do bolo: a Variety noticia, a partir do Festival de Berlim, que o nome de McTiernan está já associado ao filme de acção Red Squad. A meu ver, esta passagem directa da prisão para Hollywood dever-se-á muito ao revivalismo eighties que tem dominado uma boa fatia do mercado e que tem animado a vida cinéfila, vide essa espécie de musealização – de “museu de cera” à la André de Toth – a que se prestam as figuras de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone em filmes auto-paródicos de acção, como o franchise “nostálgico” The Expendables e, título feliz para estas histórias de supostos has beens e de um presidiário da vida real, Escape Plan (Plano de Fuga, 2013).
Espera-se um renascimento das cinzas de um dos cineastas mais marcantes e emblemáticos dos anos 80 e princípios dos anos 90. McTiernan popularizou-se com filmes como Predator (Predador, 1987) e Die Hard (Assalto ao Arranha-Céus, 1988), atingindo uma dimensão de culto (que hoje, passando em cinematecas e agraciado como auteur pela crítica mais exigente, se diria menos de culto que de “alta cultura”) com aquela que é a sua obra-prima e que, curiosamente ou não, foi um estrondoso flop comercial: Last Action Hero (O Último Grande Herói, 1993). McTiernan enfrenta altos e baixos na carreira ao longo dos anos 90, sendo que The Thomas Crown Affair será o seu segundo “grande momento” da década. Faz todo o sentido falar-se deste re-nascimento, deste re-turn, face a um filme onde, num museu, um Camille Pissarro (falso) ocupa o lugar (e não só…) de um Claude Monet (verdadeiro) por mérito (?) do seu seu próprio ladrão, um multimilionário entediado com a vida, que gosta de acção, sedução e arte antes do dinheiro que lhes está, inevitavelmente, por trás: “money’s not funny”, diz não “o falso”, mas “o verdadeiro” Thomas Crown, interpretado por Steve McQueen no altamente estilizado filme de Jewison.
Percebe-se, então, que estas histórias se fazem camada a camada, mas enquanto Last Action Hero punha em cena, num museu imaginário histrionicamente pop transposto para celulóide, alguns dos mais conspícuos símbolos e figuras míticas da Sétima Arte, The Thomas Crown Affair faz do roubo de algumas das mais importantes pinturas do século XX o motivo primeiro, superficial diria, do assalto fílmico (no filme de Jewison, esse assalto, muito menos imaginativo e clean, tem como cenário um banco, diferença fundamental que é magnificamente analisada por Joana Frazão na folha de sala do ciclo acima referido e que publicarei em breve aqui). O primeiro título, filme de “enchimento”, palavra que uso pensando no corpo de ou que é ou que faz Arnold Schwarzenegger, procede a uma colecção por adição, uma cornucópia de referências que se exibem e que se parodiam mutuamente com estrondo. O segundo título, apanágio de charme e de sofisticação, começa por nos chamar ao seu mundo através de um acto de supressão ou transferência (de uma colecção, pública, para outra, secreta, invisível), uma espécie de jogo subtractivo de quadros onde o bluff é magistral. Um bluff que vem do original de Jewison tanto quanto de outro famoso título deste cineasta, também protagonizado por Steve McQueen: The Cincinnati Kid (O Aventureiro de Cincinnati, 1965).
Com efeito, na primeira vez que a polícia – sempre às aranhas – recupera o suposto quadro roubado, constata-se que por trás da imagem há uma outra, zombeteira e desconcertante: San Giorgio Maggiore au crépuscule de Monet (símbolo do impressionismo) esconde, sob uma camada de tinta, Dogs Playing Poker de Cassius Coolidge (símbolo do mais rasteiro kitsch, uma espécie de quadro-irmão do, mais conhecido entre nós, “menino com lágrima”). Da “alta cultura” passamos, subitamente, como que por uma radiografia, para a mais pedestre “baixa cultura”. Nada de novo no reino McTiernan se nos lembrarmos que em Last Action Hero a orgia (auto e hetero) citacional era, como escreveu Luís Miguel Oliveira (em folha da Cinemateca Portuguesa), de “uma imaginação inexcedível”, com as “mais inesperadas e insólitas referências”, por exemplo, o próprio Schwarzenegger, Bergman, Stallone, Kurosawa, Verhoeven, Shakespeare, etc. Pois bem, o cinema de McTiernan exercita este (as)salto, da alta para a baixa culturas ou vice-versa, quando torna a subtracção numa adição (adição de adicionar e do inglês, addiction, de viciar) feita com panache e uma mesura clássica absolutamente impecável. De tal maneira é assim que o diálogo tende sempre a ir “para lá de si mesmo”, fazendo do cinema, de McTiernan ou o de outros que o inspiram (por exemplo, o de Jewison), uma espécie de linguagem poker.
A cena de sexo em The Thomas Crown Affair vis-à-vis o xadrez insinuante e erótico do filme original é outro exemplo deste quase infinito ludus metaferencial e apropriacionista que vai sendo alimentado em McTiernan. De certo modo, a fabulosa sequência do xadrez entre Faye Dunaway e Steve McQueen pertence mais ao filme de McTiernan, muito mais polido e erótico (isto é, clássico) que o de Jewison, do que a correspondente cena de sexo tórrido entre Rene Russo e Pierce Brosnan, mostrada numa montage sequence publicitária, vários tons acima do registo médio de todo o filme. Aliás, o estilo de The Thomas Crown Affair é matéria plástica trabalhada centrifugamente a partir da notável interpretação de Pierce Brosnan, levando McTiernan ao encontro da célebre frase de Buffon: “o estilo é o homem”. Para Jewison, num filme conceptualmente interessante mas muito mais “datável”, Steve McQueen não era suficiente e, portanto, sufocou-o – a ele e ao filme – com todo um excesso formalista trendy, de resultados variáveis.
Mas há mais para além dessa meta-referencialidade constante, explorada a partir do assalto, do homem que o faz e do museu onde este “põe, expõe e dispõe” as suas conquistas (obras e, atenção De Palma, mulheres), na qualidade de programador/realizador por direito próprio ou na (nada) simples condição de “Monet lover”. Há mais, mas, aqui, quase sempre mais é menos, porquanto tudo se esconde, se subtrai, por trás das muitas superfícies do filme – ecrãs, quadros, enquadramentos. Atrás de… por debaixo de… não encontramos apenas cães a jogar poker, mas algo que, de tanto se insinuar na derme da matéria, muito composta, de um filme de acção, acaba por se tornar no objecto primeiro de admiração e… jogo: o sexo. Para chamar à superfície, radiografar, o “Hawks lover” é preciso dizer, um pouco como o citadíssimo René Magritte, “Isto não é um filme de acção!”. Ou melhor, a acção está na sedução, no jogo de parada e resposta e na troca de olhares, palavras e sorrisos que se desenrolam entre o Crown de Brosnan e a personagem de Rene Russo (a actriz, já dei a entender, ocupa o lugar de Faye Dunaway no original, sendo que esta última regressa num papel pequeno, mas muito relevante; como uma uma espécie de assombração do filme subconsciente, incarnando a psicanalista de Crown!).
Em The Thomas Crown Affair, por trás dos cães que jogam poker está uma obra de arte excitante, que não é de Monet, nem de Pissarro, mas simplesmente (ou não tão simplesmente quanto isso) dos lábios de Rene Russo, aqueles que fecham – num plano magnífico – o original falso ou o falso original de McTiernan. Esses lábios provam o que escreveu Manuel Cintra Ferreira (na sua folha da Cinemateca): “a verdadeira história” aqui é “uma história de sedução e conquista da mulher amada (…). É nesta característica que encontramos a influência maior de McTiernan, a do já referido Howard Hawks, fazendo da relação entre homem e mulher, um verdadeiro «confronto»”. É esse “confronto” que desejo voltar a ver por trás das camadas presumivelmente de “acção excitante” de Red Squad, o primeiro (espero eu) de muitos títulos da fase pós-cárcere desse caso, in toto, mais hawksiano do que jewisoniano, chamado John McTiernan.