“Líquido é, por definição, o que prefere obedecer à gravidade, mais do que manter a sua forma, o que recusa toda a forma para obedecer à sua gravidade. E que perde todo o porte por causa desta ideia fixa, deste escrúpulo doentio”. Esta citação, tirada de Francis Ponge através de uma palestra radiofónica de Maurice Merleau-Ponty, dá-nos o mote para liquefazermos os ingredientes da grande Sopa. Debaixo d’água, o cinema deixa-se dissolver nos mistérios informes ou multiformes dessa matéria especular que nos foge sempre, desobediente e doentia, das mãos: a água. Quer uma colher ou uma braçadeira? Bebe ou nada?
Em 196o Jerry Lewis escreve, produz e protagoniza dois filmes, um de estúdio (a cores) de nome Cinderfella (Cinderelo dos Pés Grandes, 1960) realizado pelo seu mestre Frank Tashlin e um objecto pessoal (a preto e branco), a sua estreia na realização, The Bellboy (Jerry no Grande Hotel, 1960). No ano seguinte o esquema repete-se, o filme de estúdio colorido, o incrível The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961) (de novo realizado pelo próprio) e o objecto mais pequeno e com maior liberdade criativa, The Errand Boy (O Mandarete, 1961). Só mais tarde Lewis tomaria pela primeira vez simultaneamente o papel de totó e de galã [na versão vitaminada de Dr. Jekyll and Mr. Hyde], por isso a figura dos filmes anteriores é a do moço de recados, do mandarete, do empregado bagunceiro, enfim do patego (a tradução possível de patsy). No entanto, o que é curioso é que nas películas mais pequenas Lewis entra no território do humor pós-moderno (coisa que não acontecia de forma tão pronunciada nos filmes de Tashlin e demais), que é como quem diz, filmes que brincam com a imagem que Lewis criou para si mesmo e com a própria imagem do actor como trabalhador do engano. Em The Bellboy, o actor Lewis repousa no hotel onde o personagem de Lewis trabalha e no final de The Errand Boy a enorme estrela Jerry Lewis ajuda um pobre trabalhador indiferenciado a colar um cartaz de Jerry Lewis e esse trabalhador é… Jerry Lewis – fechando o ciclo iniciado no final do genérico de abertura. Nesse sentido o plano acima funciona como súmula visual do trabalho referido, no sentido em que um homem afogando-se informa o espectador que se está a afogar. Não é só o gag per si, é o que revela da falsidade do cinema – no fundo todos sabemos que Lewis não se está afogando -, mas é isso que faz de Lewis um dos maiores provadores do cinema, porque com ele tudo é esticado ao limite… até a caixa de ar.
Ricardo Vieira Lisboa
N’ O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha, há um qualquer feitiço que se apega a nós desde muito cedo, por cantorias com rimas proféticas e correntes fantasmagóricas tanto de ouro como no Douro. O feitiço é povoado de afilhadas sereias e madrinhas vampiros, que não têm o passado resolvido e se batem por amores enquanto aquele rio lava os crimes e a tudo assiste, sereno. Porque se chama assim o Rio Douro? Quanto pode ele? Por quanto mais tempo há-de suportar a idiotice dos homens? É por o passado imponente deste rio e das gentes que à volta dele foram vivendo não ter sido esquecido que o filme de Rocha roça o mitológico. Mas às razões que aqui nos trazem: quando a madrinha Carolina (Isabel Ruth) entra em delírio e parece comandar todo o espaço e toda a vida ao redor da sua varanda, a afilhada Mélita (Joana Bárcia) entra no rio e faz um mergulho impossível até aos braços do seu amado enquanto tudo reza para que a Senhora das Águas lave os pecados deste mundo. Há amores que só na morte são consumados. No leito sem fundo deste rio, que os afunda, e que só foi tão belo sob o olhar de Leonor Silveira, no Vale Abraão (1993) de Manoel de Oliveira. E também nele Isabel Ruth parecia ter poderes que não são deste mundo…
João Palhares
Obra-prima das viagens no tempo (género cinematogáfico interessantíssimo mas bastas vezes mal usado), Deja Vu (Déjà Vu, 2006) é também uma espécie de remake de Laura (1944) em que o herói devolve a vida a uma morta por pura força de vontade (do desejo). Em Deja Vu há uma “explicação” para a ressuscitação, a viagem no tempo, que mais não é do que a manifestação dessa vontade (desse desejo, também sexual) do protagonista (o paleio científico não convence ninguém e é apenas decoração, cuja função se resume a ela). Contudo, a possibilidade de andar para trás no tempo (uma e outra vez) não destrói o seu poder. Aquela bomba, embora submersa, explodirá sempre às 10h50 de uma terça-feira (uma e outra vez) e matará mais de 500 inocentes e a morta ressuscitada para a morte (uma e outra vez) se ninguém o impedir (uma e outra vez). A história repete-se com variações, com correcções, até que se acerte de vez, mas, a mal ou a bem, os ponteiros avançarão sempre para a hora fatídica (uma e outra vez). É a sua função como é a da bomba explodir. Uma e outra vez.
João Lameira
É uma cena de uma beleza de tirar o fôlego. O monstro do lago segue agilmente a bela que nada à superfície. Segue ou acompanha ou baila? Jack Arnold convidou um exímio nadador para vestir o fato da Criatura e claro que Julie Adams terá passado no casting devido à sua graciosidade de sereia. Nestes instantes, a atmosfera carregada de suspense não é interrompida pela materialização da ameaça, mas por uma espécie de bailado underwater, onde o atletismo e elegância desta nova versão de “a bela e o monstro” se misturam e entrelaçam. A história secreta de amor de The Creature from the Black Lagoon (O Monstro da Lagoa Negra, 1954) está em cada braçada da suave nadadora e no sincronizadíssimo jogo de pés da criatura, para quem a defesa do habitat é secundarizada pela possibilidade da companhia desta ninfa de carne e osso. Há sempre algo de profundamente humano nos monstros de Jack Arnold e, neste caso em particular, onde a qualidade horrífica não adveio de uma metamorfose mas que nos é dada pela história, sentimos mais densamente a inquietude da sua solidão submarina. Arnold era amante de Robert Flaherty, nomeadamente de Louisiana Story (1948). A sua acepção muito líquida de filme fantástico vem à superfície, em toda a sua transparência, nesses instantes de pura poesia fílmica quasi-flahertiana.
Luís Mendonça