Há um gosto macabro na reconstituição própria ao métier do jornalista. Esse desejo de reviver o trágico no sentido de o conhecer e dar a conhecer é algo que está na própria essência daqueles que preenchem horas infindas de programação televisiva e igualmente infindas folhas de papel, sendo que o recente caso das mortes no Meco é apenas o lado mais visível e extremado disto mesmo. O repetir, repisar e reconstituir as “trágicas horas” que antecederam um sinistro é coisa que delicia qualquer periodista. Curioso, ou nem por isso, é reconhecer que também o cinema está construído sobre um mesmo desejo de repetição, uma igual necessidade de ver e rever, de repetir e regressar às mesmas histórias e às mesmas pessoas e às mesmas sensações – agradáveis ou nem tanto. Esta natureza lúgubre do cinema está patente em Philomena (Filomena, 2013) de forma bastante marcada – para o melhor e para o pior.
Talvez seja benéfico começar por justapor Philomena a filmes como Ace in the Hole (O Grande Carnaval, 1951) de Billy Wilder, com Kirk Douglas, ou o seu “remake” nineties Mad City (Cidade Louca, 1997) de Costa-Gavras com Dustin Hoffman. Nos três filmes começamos por conhecer homens do jornalismo que já foram de referência, mas que agora, por diversos motivos, estão na mó de baixo. Todos eles são sanguessugas à espera de uma história, a próxima grande história, que os catapulte de volta para o estrelato. Todos eles arranjam um choninhas indefeso e meio mentecapto que, pela sua situação, lhes proporcione esse artigo, essa cascata de headlines, esse furo televisivo – que é tanto um homem preso numa mina, um homem preso num sequestro ou uma mulher presa a um “pecado” com 50 anos. Todos eles procuram uma comovente human interest story – “You pick up the paper, you read about 84 men or 284 or a million men, like in the chinese famine. You read it, but it doesn’t stay with you. One man’s different. You wanna know all about him. That’s human interest.” Tanto Wilder como Gavras não receiam mostrar o nojo que há em cada um dos seus jornalistas – que dificilmente se arrependem e mesmo que o façam é para logo de seguida repetirem o mesmo (se é que há próxima vez…) – ao passo que Frears joga sempre esse inglório desafio de andar com todos os seus personagens nas palminhas, todos são bons no fundo (mesmo que seja mesmo lá no fundo).
Porque faz Frears uma coisa destas? É fácil, porque Steve Coogan, que interpreta o jornalista, é também o autor do argumento (juntamente com Jeff Pope – vá-se lá perceber os senhores da Academia que nomearam ambos para o Óscar de Melhor Argumento Adaptado; é o poder dos manos Weinstein) e o produtor do filme. Não lhe interessa colocar-se numa posição dessas onde é manipulador, insensato e calculista. Para isso, o filme (e o argumento) entra nas mais complexas manobras de ginástica acrobática que me recordo de ver recentemente. Vejamos: Coogan tem que obrigar Philomena (Judi Dench) a permanecer nos EUA (mesmo depois de esta descobrir que o filho tinha já morrido fazia 8 anos), ele inocentinho não queria, mas a editora obriga-o, e quando se prepara para manipular a velhinha, esta já mudou de ideias (inspirada por um reclame de perfumes exibido num ecrã publicitário no aeroporto) e, afinal, quer ficar para conhecer os amigos do filho perdido. Assim ele sai por cima e todos ficamos contentes. De novo no final ele enche-se de coragem e reconhece que a história de Philomena é tão pessoal que não deverá ser publicada, ao que a senhora responde dizendo que afinal mudou de ideias e deseja a publicação do artigo. De novo Coogan sai limpo, à custa da personagem de Philomena se ir tornando progressivamente num cata-vento que gira na direcção que o argumento impõe. Percebemos pois que as características deploráveis que sombreavam os jornalistas nos outros dois filmes são agora aquelas que atribuímos a Frears. Deu o peito às balas e fez um filme que a bem de não colocar o seu personagem principal na posição merecida embarca em jiga-jogas de contornos morais duvidosos – o cinismo de toda a empresa é várias vezes incómodo, vide a forma como nos rimos de Philomena em vez de nos rirmos com ela ou de como descobrimos numa rápida pesquisa pela rede que o confronto final (o fecho emocional de Philomena e Philomena…) é factualmente impossível, já que a freira Hildergard havia morrido à época (“When you have a big human interest story, you’ve got to give it a big human interest ending”).
Mas regressando à natureza lúgubre do cinema, há um dispositivo que me interessa em Philomena: a forma como esse desejo de regressar a um passado é feito de mãos dadas com o regresso ao arquivo (mesmo que de pacotilha – mas ao que parece alguns dos vídeos caseiros que vemos ao longo do filme são de facto os filmes caseiros do filho perdido de Philomena). Isto é, sempre que Philomena regressa a um local que viveu (ou, não vivendo, fê-lo pelo sangue da descendência) os lugares chamam memórias quase sempre sobre a forma de filmes super 8 ou vídeos caseiros. Aqui representa-se simbolicamente esse desejo de fixar na película (ou noutro formato) o que já só volta em fantasmas de luz projectados. Nesse sentido Philomena é de facto um filme sobre a perda, aquela que acontece sempre que uma câmara rola.