Esta crónica começará, por preguiça de quem a assina, com uma série de citações de três artigos publicados recentemente, sendo que os sublinhados provêm do preguiçoso assinante:
Um “aumento de 160% nos pedidos de rodagens e que diz ter trazido à cidade pelo menos seis milhões de euros. (…) de Outubro de 2012, quando foi fundada [Lisbon Film Commission], a Outubro de 2013 indicam que houve 559 pedidos de rodagem neste ano – filmagens de cinema (52%), publicidade e outro tipo de produções audiovisuais.”
em Público a propósito do balanço da nova comissão de apoio à rodagem de filmes em Lisboa.
“‘Muitas vezes as partes musicais são filmadas fora da Índia, para mostrar ao público imagens de sonho‘ diz (…) Shruti Haasan, actriz que faz parte da realeza de Bollywood (…) [ela] dança frente à câmara, para depois se fotografar frente aos graffiti das escadinhas da Travessa das Terras do Monte, a sua versão do exotismo português.”
“Esta curta visita, dez dias de trabalho para 22 pessoas (…). Com o aluguer do equipamento – uma vantagem que os indianos valorizam e tem os preços praticados na Índia -, e logística (…) a quantia ascende aos 300 mil euros (…). ‘É óptimo termos equipas a funcionar’, diz, referindo-se à quase paralisação do cinema em 2012 por falta de apoios estatais. ‘Tomáramos nós ter todos os meses uma produção indiana‘.”
em Público numa reportagem que cobriu um dia de rodagem de Balupu (2013) – protagonizado pela estrela indiana Ravi Teja -, primeiro de vários projectos de Bollywood cuja rodagem passa por Portugal.
“Portugal appeals mainly to advertising producers – with a noticeable pick up in work since 2010 (…). Starting in 2010, creative agency Adam & Eve has shot a number of executions in Portugal because the country’s coastline can double for Australia and because the cost of onscreen talent is so competitive.”
em KFTV (Film, TV & Commercials Production Companies and Services Directory) num relatório sobre as vantagens e desvantagens de filmar no nosso país.
Parece-me óbvio, dos trechos acima e daquilo que vou ouvindo por aí, que a estratégia para a cultura – e em particular para o cinema – deste governo é perfeitamente concertada com o resto das suas políticas, ou seja, a estratégia de derisão. Isto porque de tão cruel e subjugadora só mesmo o riso a pode encarar de frente. Então vejamos.
A cultura em Portugal é como uma senhora gorda que assiste ao vivo aos programas da manhã. Já foi bela e espevitada mas viveu muitos anos acima das suas capacidades (de metabolismo) e ficou assim, pançuda e inchada. Vem o Goucha (que é o governo nesta metáfora) e diz-lhe, “Filha, tu ocupas muito espaço à frente da câmara e eu é que sou a estrela”, portanto despede-a com justa causa (nem é preciso nova alteração ao código laboral) e a senhora balofa vai para casa viver da sua reforma (cortada – se é que a tem). Posto isto, o Goucha fica triste de ter feito uma maldade tão grande (e já nem pode admirar os Mirós lá do escritório) a uma senhora assim, tão simpática e roliça. Para a animar oferece-lhe um bilhete para ir assistir ao concerto especial do Tony Carreira no Coliseu (que é nesta metáfora as medidas de “estímulo ao empreendedorismo”). A senhora vai, com alegria (e por momentos esquece-se que foi despedida e que a sua pensão foi aparada), e na emoção do menino sonhador ela grita, “Tony, faz-me um filho!” Não sabe ela que essa é a sua última alternativa de deixar descendência.
O que se passa com o cinema é isto mesmo, um depauperamento sucessivo e exaustivo daqueles que nele e para ele trabalham. Se uma paralisação em 2012 não era suficiente para derrear os poucos que tentam viver dessa coisa indecente que é fazer filmes, ajudou à festa o não pagamento pelos operadores de televisão, prolongando a paralisação para 2013 e assim, com dois anos de quase nada, espera-se que o futuro seja brilhante. Esta é a estratégia concertada, a dita estratégia da derisão, em que o governo organiza este brilhante gag visual esperando que como em Ordet (A Palavra, 1955) os mortos se levantem e caminhem – e nesse choque de expectativas entra o riso (diabólico com certeza).
Por tudo isto percebemos que se diga “Tomáramos nós ter todos os meses uma produção indiana”, porque trabalhar aos preços da Índia é melhor que não trabalhar sequer. Percebemos que se anuncie Portugal como um lugar onde “the cost of onscreen talent is so competitive” porque, de novo, trabalhar on screen é melhor que não trabalhar de todo. Mas como este é um país onde nem os portugueses querem (ou podem) viver, também se vende Portugal como o lugar ideal para imitar outras zonas – a costa da Austrália é ali mesmo a meio da rota vicentina – e pouco falta para que as manifestações e o vandalismo se transformem no “exotismo português”. Tal como a senhora gorda nós gritamos “Ravi Teja, faz-me um filme!” Não sabemos nós que esta é a nossa última alternativa de deixar uma… cinematografia.