Yi Yi (2000) foi o último filme de Edward Yang mas permanece o mais conhecido e acessível (em termos de distribuição) da sua filmografia. Um dos mais belos filmes do cinema de Taiwan, Yi Yi passa na próxima quarta-feira na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Uma excelente oportunidade para regressar a Edward Yang.
Há uma certa circularidade em Yi Yi, uma viagem entre o início e o fim centrada na vida que acontece entre eles. Começa com um casamento e acaba com um funeral, pelo meio tem um nascimento, um reencontro, um crime e uma série de momentos, de passagens. Não destoando da filmografia de Yang, Yi Yi é, porventura, o seu filme mais sereno, onde até a acidez e uma certa dureza de outros filmes seus estão domadas, contidas na decência e na inocência de três das figuras centrais do filme, o pai NJ (interpretado por um gigante da literatura e do cinema taiwaneses, Wu Nien-jen), a filha Ting-Ting (Kelly Lee) e o filho Yang-Yang (Jonathan Chang). Não quer isto dizer que do filme esteja ausente o olhar crítico de Yang sobre a sociedade taiwanesa (aqui com farpas dirigidas à superstição, a práticas empresariais e aos média, entre outros), mas de alguma forma há uma reconciliação com a vida, um aceitar que todos “ficamos velhos”.
Ao longo de três horas acompanhamos, um a um (o título do filme pode ser traduzido como “Um Um”), os membros da família Jian e de uma série de personagens que gravitam em seu torno. Cada membro da família como que chega a uma encruzilhada que tem de separar. NJ, o pai, trabalha numa empresa informática que já viu melhores dias e debate-se o estado do seu presente ao reencontrar Sherry, o amor de juventude do qual fugira. A mulher de NJ, Min-Min, constata o vazio da sua vida pela ausência de “coisas para contar” à mãe em coma. Ting-Ting, a filha mais velha, está na fronteira entre a adolescência e a idade adulta e experimenta os inícios do desejo e da frustração como observadora da tumultuosa relação da sua vizinha do lado com o namorado desta. Yang-Yang (a rima com o apelido do realizador é óbvia), o filho mais novo, irá também ele passar uma fronteira, emocional e artística, expressa na sua observação de uma das raparigas que o goza na escola e no desabrochar da sua relação com a fotografia. O cunhado de NJ, A-Di, é uma figura algo patética na sua forma despreocupada, exagerada ou simplesmente mentirosa de se relacionar com as duas mulheres da sua vida e a sua família, mas também ele é menos óbvio do que parece. Já a avó, da qual pouco sabemos ou ouvimos, emerge como a figura silenciosa e quase invisível em relação à qual uma série de acções e confissões são desencadeadas.
Embora haja choro, gritos e violência em Yi Yi, o desenrolar das relações entre as personagens e a sua auto-reflexão é subtil, delicada, poética mesmo – uma poesia do real mas, sobretudo, uma poesia do cinema. Afinal o cinema potencia a vida. “Vivemos três vezes mais desde que se inventou o cinema”, diz a dada altura uma das personagens. O cinema permite-nos sentir o que apenas imaginamos ou, como as fotografias de Yang-Yang, ajuda-nos a ver o que não conseguimos.
Não falta frases intrigantes e até deixas de peculiar humor nos diálogos de Yi Yi. Mas este é também um filme de silêncios e de sussurros (como os da voz de Ting-Ting), um filme onde importa mais tudo o que fica por dizer. Essa delicadeza do filme é reforçada pela banda sonora de piano da autoria da então mulher de Yang, Peng Kaili. E, como todos os filmes de Yang, é um filme em que as imagens são soberanas e onde os actores (a maioria não profissionais) não existem isolados mas fazem parte dos espaços. Não que as interpretações não sejam soberbas (são), apenas que elas não existem em vácuo mas na experiência total de cinema de um filme de Yang. O detalhe ínfimo dos décors, do guarda-roupa, da iluminação, mas acima de tudo os enquadramentos meticulosos de Yang tornam Yi Yi num filme de notável equilíbrio de excelência técnica bem como num retrato verosímil de uma família de classe média taiwanesa.
A cidade de Taipé é inextricável da obra de Edward Yang. Ela funciona quase como uma super-personagem, com os seus espaços de perpétua alienação mas que são também o único espaço possível para as personagens – algo peculiarmente sugerido pelos jogos de reflexos entre as luzes do movimento citadino lá fora e as personagens dentro de casa ou de carros ou dos planos das janelas, com as construções citadinas a limitarem o olhar. É verdade que uma parte de Yi Yi se passa em Tóquio (o filme foi co-produzido por produtoras japonesas e tem no elenco um dos mais famosos actores do Japão, Issey Ogata) mas mesmo em Tóquio é a Taiwan do passado de NJ e Sherry que domina o seu breve reencontro. A Taiwan de Edward Yang é tão confinada como múltipla. Fala mandarim, taiwanês e inglês (e a referência ao Japão está lá também), e está ligada – ou dividida – entre possibilidades e escolhas que tanto atravessam oceanos como estão limitadas a uma mesma rua.
Alguém falou um dia numa “Taiwanese sadness”. Talvez Edward Yang a tenha compreendido como poucos e a tenha filmado como ninguém. Yi Yi não deveria ter sido o seu último trabalho. Em retrospectiva, Yang, prematuramente desaparecido em 2007, deixou-nos um belíssimo adeus.