O nome deste entrevistado será desconhecido da maioria, mas se eu falar de Charles Burnett o leitor cinéfilo já tem alguma obrigação de, pelo menos, ter ouvido falar. O seu Killer of Sheep (1979) foi redescoberto mundialmente em 2007, tendo em Portugal marcado a secção Director’s Cut do Indie Lisboa 2008. A verdade é que nem todo o esquecido cinema independente norte-americano se resume a este título. O próprio Burnett colaborou (enquanto director de fotografia, nomeadamente) com outros nomes que lentamente vão dando que falar. Um deles é o de Billy Woodberry, descoberta maior de 2013 para o público português que frequentou o ciclo Harvard na Gulbenkian. A curta The Pocketbook (1980) e a longa Bless Their Little Hearts (1984) são as obras que me puxaram imediatamente para a conversa com o seu realizador, um verdadeiro príncipe negro de olhar penetrante e voz intensa [de tal modo intensa que o seu amigo Thom Andersen o convidou para fazer o voice-over do documentário Red Hollywood (1996)].
Eis então dois dramas humanos, que põem no centro o confronto do indivíduo negro consigo mesmo antes do seu confronto com a sociedade (ou com os “whites”), filmados com a câmara livre que só encontramos no melhor cinema independente norte-americano (por exemplo, Helen Levitt e Sidney Meyers, a quem o realizador dedica a sua curta-metragem). A ressurreição destes filmes – podemos adivinhar com toda a segurança do mundo – está para breve, como de resto já se anuncia nestas palavras de Billy Woodberry ou na recente notícia sobre a entrada de Bless Their Little Hearts na exclusivíssima colecção da Biblioteca do Congresso Americano. Um tesouro que permanece por desenterrar, uma parte da história que falta fazer. O À pala de Walsh projecta um passado não tão distante quanto isso para ser ignorado e antecipa o futuro próximo de todas as (re)descobertas. Agradecemos as colaborações de Pedro Fernandes Duarte (Rosa Filmes) e da fotógrafa Joana Linda na realização desta peça. A entrevista está disponível na sua versão original (em inglês) aqui e será publicada na íntegra no meu trabalho final de doutoramento.
Se nos fala sobre abandono, solidão e desenraizamento social na vida de uma criança em The Pocketbook, em Bless Their Little Hearts dá-nos um olhar honesto e terno sobre o dia-a-dia de uma família da classe trabalhadora. De uma vida de delinquência e orfandade na cidade para uma vida desenrolada no núcleo do ninho familiar. Esta transição foi pensada? Planeava esta evolução temática?
Bem, isso faz sentido, porque mesmo em The Pocketbook eu enfatizei o facto de a mulher ser trabalhadora. Logo, eu estava apostado em procurar pôr estas pessoas nos filmes. Quando criámos esta história, fazia sentido. Era uma espécie de continuação, por causa do tema e do que aprendi no processo de realizar essa primeira curta. Mas são os problemas desta classe de pessoas, deste tipo de gente que me interessaram. Mesmo o meu professor alertou-me que eu não podia fazer esse filme.
Porque era um filme de estilo antiquado?
Sim, os filmes são filmados a cores, têm isto e aqueloutro. Não foi feito para ser contundentemente retro. Era fácil, na altura, termos boa película a preto-e-branco e os laboratórios ainda eram bons. Na realidade, na altura a película a preto-e-branco era mais barata do que a cores; a cor era mais cara e mais difícil de trabalhar. O preto-e-branco era bastante simples. Bastava manter os processos simples e não haveria problemas. Esse era o lado apelativo. Em segundo lugar, essa película era fácil porque um amigo meu conhecia-a bem. Ele filmou imenso com ela, pelo que estava bastante familiarizado e achava que era muito rica e que podíamos fazer muita coisa com ela. Por isso, foi fácil escolher a película a preto-e-branco.
Perguntava isso porque estava a pensar que se se relançasse The Quiet One (1948) [de Sidney Meyers e Helen Levitt, dois nomes a quem Billy Woodberry dedica o seu filme] e fizéssemos uma sessão dupla com The Pocketbook, os dois filmes pareceriam contemporâneos um do outro.
A questão com The Pocketbook prende-se com o facto de ter sido filmado em reversal stock, com um alto rácio de contraste. E se calhar o stock [em The Quiet One] foi pancromático, mas era recente e eles filmaram em 16mm e depois ampliaram para 35mm. E foi um dos primeiros filmes a fazer isso. Ganhou um prémio em Veneza. Foi reconhecido no seu tempo. Era especial e deu coragem a Cassavetes e outros. Eles conheciam esse mundo. Mas costumava existir uma indústria do cinema em Nova Iorque que fazia filmes muito diferentes daqueles que faziam quando se mudavam para Hollywood. As pessoas independentes, pessoas que insistem em trabalhar em Nova Iorque, eles tinham a sua estética, a sua abordagem à cidade. Fazia sentido. Sempre gostei desses filmes. Os realizadores mais radicais e mais experimentais dos anos trinta e quarenta ficaram em Nova Iorque. Leo Hurwitz, toda essa gente, pessoal da Frontier Film… Falando em fotógrafos [como era Levitt], Paul Strand. Toda essa gente, que começou nos anos vinte, como operadores de câmara, era apelativa.
Também encontrei no filme de Sidney Meyers a mesma prudência na abordagem a temas sociais e raciais. Num filme como Bless Their Little Hearts o foco principal está num conflito individual. A criança negra ou o homem negro luta principalmente consigo mesmo, mais do que contra os preconceitos da “sociedade branca”. Concorda com a ideia de que simplesmente denunciar a discriminação racial na sociedade norte-americana seria inverter a fórmula inscrita? Por outras palavras, será que isso se tornaria numa outra forma de racismo?
Não completamente. No meu caso, eles fazem piadas sobre negros, mas a personagem principal nunca explica a sua situação, a sua condição pelo racismo ou pelos brancos. Ele nunca se declara ou lamenta a sua existência enquanto homem negro, porque é óbvio que ele o é. Num nível macro, o nível mais vasto, a sua condição é determinada por forças que vão para lá da sua capacidade para explicar, é a economia mais vasta que torna as pessoas redundantes. Esta é uma condição de classe generalizada que é quase universal em todas as sociedades capitalistas avançadas. Todas as sociedades onde existem relações capitalistas de produção estão condenadas a ter um certo número de pessoas que está na reserva. Estas pessoas vivem uma realidade complexa: quanto tempo irão permanecer nesse estado? O que lhes acontecerá se permanecerem aí por demasiado tempo? Assim é o entendimento geral dessa realidade. E simplesmente acontece que ele é um trabalhador oriundo de um grupo com uma certa história, mas ele é um trabalhador, um homem universal, nesse sentido. Era importante afirmar isso, por oposição a simplesmente explicar tudo o que acontece a um homem com o preconceito racial. Este é um aspecto, mas as pessoas podem levantar estas questões por si mesmas.
Estava a pensar num realizador sobre o qual falou ontem [no Q&A após a projecção em Harvard na Gulbenkian], Ousmane Sembene, sobretudo o seu filme La noire de… (Black Girl, 1966), e estava a pensar noutro filme, Come Back, Africa (1959) de Lionel Rogosin. Estes são dois filmes fortemente engajados contra o racismo. Como se relaciona com estas duas abordagens?
Conheço esses filmes. O filme de Sembene é também um filme contra o colonialismo imposto em África e sobre o que o homem africano do colonialismo impõe às pessoas e como as pessoas têm de lutar através do estranhamento e alienação que isso impõe. E depois sobre o que lhes acontece. A forma como ele afirma a validade cultural nessa situação é também importante. As personagens francesas, aprisionadas pelas relações, os preconceitos, mas também a sua posição na hierarquia das coisas, não conseguem ver a outra pessoa, de facto… Eu certamente sei que isso é válido e importante. O filme de Lionel Rogosin é uma coisa complicada, porque o apartheid era um sistema específico. Ele teve a habilidade de fazer um filme clandestinamente que falava sobre o que [esse regime] impunha às pessoas, em termos de restrições ao movimento, à simples existência e à circulação livre na sua sociedade. E também falava sobre o que entrava na vida das pessoas, a violência, mas também a beleza, o engenho, o humor. Mas é um filme precioso. Eu incluo-o junto com as pessoas de Nova Iorque, Shadows (Sombras, 1959) e tudo o resto. Mas talvez pertença em parte a África, por causa da colaboração do povo sul-africano nesse filme.
Antes, ele fez On the Bowery (1956).
Sim, On the Bowery. Ele foi seguramente um dos inventores do New American Cinema. Ele também era dono de uma sala de cinema; projectava filmes, filmes estrangeiros.
Recuando ao discurso sobre o racismo, era capaz de assinar um filme como La noire de…? Pergunto isto porque eu acredito que os seus filmes são mais universais. São mais sobre um conflito interior; mais sobre o homem versus a sociedade do que sobre a sociedade versus o homem.
Talvez. Mas os meus colegas e amigos de escola estavam engajados com um discurso e uma política de influência sobre o movimento do black power, que foi vital e importante para todos nós, e com a afirmação da beleza, inteligência e valor negros. Eu fui parte disso, eu absorvi e entendi isso. Mas então porque escolhemos fazer filmes e a partir de que posição? Muitos deles eram francamente pan-africanos e engajavam-se totalmente em discursos sobre África. Temos um filme belíssimo, sobre o qual e o senhor Augusto [M. Seabra] falou ontem à noite: Mirt Sost Shi Amit (Harvest 3000 Years, 1976) de Haile Gerima. Ele fez um belo filme, sobre um beneficiário da segurança social com uma filha e um marido, intitulado Bush Mama (1979). É um filme importante e icónico. E preferido por muitos. O meu colega Larry Clark [o realizador de Passing Through e Cutting Horse] e outro colega, Alile Sharon Larkin, fizeram filmes que se ligavam à situação da América negra e ao que acontecia em Angola.
Como é que eles reagiam aos seus filmes ou aos filmes de Charles Burnett?
Eles eram sábios e generosos o suficiente para respeitarem diferenças dentro do grupo. Eles conseguem admirar e respeitar a legitimidade e também sabem que Charles Burnett diz a verdade; que ele sabe e que mesmo que seja diferente daquilo que eles sabem ou do que acreditam, isso faz-lhes reconsiderar o que eles sabem. Logo, não, eles gostavam dos filmes, eles eram, por vezes, os primeiros a gostar dos filmes. Mesmo que não sejam os filmes que eles fazem, mesmo que não seja a sua paixão, o seu interesse. Eles fazem filmes sobre mulheres que precisam de se afirmar, a sua preferência, a sua identidade, a sua voz. Nós coabitamos com tudo isto. Essa é a riqueza da experiência.
Pergunto isto porque parece-me que deu vários passos à frente. Talvez o contexto político dessa época ditasse que deveria fazer statements mais radicais e políticos no filme, mas o Billy estava a fazer filmes mais complexos e universais.
Talvez eu tivesse uma boa história de um homem sensível e inteligente e tínhamos o interesse de fazer o filme que conseguíssemos fazer. A experiência negra, em certos aspectos, é particular, mas também é em si mesma universal. Eu diria o mesmo sobre La noire de…. Mesmo que essa história tivesse lugar entre vietnamitas ou noutro lado qualquer, as pessoas iriam ter a mesma experiência de serem alienadas, não serem compreendidas e terem de lidar com um poder que residisse noutro lugar. Estas são coisas universais. A outra coisa é, talvez, alguns escritores na tradição afro-americana – estou a pensar em Ralph Ellison – terem argumentado que, de facto, a estética dos blues é uma maneira de encarar os problemas existenciais da vida. É semelhante aos altos discursos filosóficos, ditos numa linguagem muito simples, na sua maneira poética e musical. Não era académica, mas estava a reconhecer e a oferecer isso. Se as pessoas experienciam dessa forma nós somos uns sortudos, certo? Mas as influências vêm de uma série de coisas diferentes. Estamos a tentar compreender o que outros fizeram, como outros lidaram com estas experiências e realidades, e qual a melhor maneira de chegar a uma verdade sobre isto. Brecht e muitos outros, outros artistas e pensadores… Mas vem de algum lugar. Vem da cultura americana através das pessoas afro-americanas.
Mencionou Brecht. Estava a pensar no momento de Bless Their Little Hearts quando a mulher pede ao marido para dizer a verdade ante si e ante Deus. Quando a mulher diz “ante Deus” penso que ela olha a câmara, como que pondo-nos a nós – espectadores – dentro da discussão. A partir daí, eu senti que o espectador foi convocado e que era impossível fugir dessa cena. Que tipo de relação pretende estabelecer com o espectador?
Uma coisa interessante que é preciso saber é que essa cena é composta por três figuras: o homem, a mulher e a câmara. O operador de câmara, Charles Burnett, tem a câmara ao ombro. Ele nunca viu esta cena antes. A cena não foi ensaiada. A cena é o segundo take completo, à excepção de ter cortado a cauda e a cabeça do plano. Mas ele nunca viu a acção completa antes e ele precisa sempre de estar no sítio certo para a tornar significativa, para dar uma imagem e um som do que se passa – e o sentimento do que se passa. Ele precisa de encontrar a distância correcta para pôr a cena a trabalhar. Então isso acontece. E se ele vai ter com ela num instante é porque ele sente que é certo e que soa bem estar ali. Nós tirámos toda a mobília dali para fora, esvaziámos a cozinha, que se tornou num espaço dela [da mulher]. [Os actores] criam e utilizam o espaço. [Burnett] cria o frame do espaço que nós vemos, a experiência que nós vemos. Ele nunca a viu antes, porque eu comecei por dizer “o tipo agarra a mulher, e pára”. “Tu não podes agarrá-la”. É isso que acontece quando agimos de modo denunciado, como quando usamos força física, nós paramos a discussão, paramos a troca, e tudo pára. Não tinha qualquer cena, por isso é preciso fazer algo. Ele [o actor] precisa de fazer outra coisa que não agarrá-la. Temos de suster tudo até ao fim. Foi isso que aconteceu. E se por acaso ela olhou para a câmara quando disse “Deus”, ela nem estava consciente disso. [Burnett] faz a cena. O argumento é uma página que diz “ela sente que tal está a acontecer, ela sabe que algo está errado, ela diz-lhe, ela deixa que ele saiba que ela sabe, ele tenta negar, ele tenta discutir com ela, ele tenta explicar-se”. É a única coisa que ele tinha, mas o diálogo eles disseram-no. Quando a cena começa ela está a descascar uma maçã com a faca, ele vai ao fogão. Temos uma faca, fogo e todo o tipo de possibilidades, mas eles afastam-se delas.
Disse que fez os seus filmes com “pouco dinheiro mas muita liberdade”. Podemos dizer que esta é a condição para toda a realização: menos dinheiro significa mais liberdade?
Não, não o recomendo. Na verdade, um homem uma vez escreveu que esperava que “eles não fossem mimados por ganharem demasiado dinheiro”.
Nós só estamos aqui a falar de grandes filmes que foram feitos com quase nenhum dinheiro.
Não, nós tínhamos algum dinheiro. É necessário ter um mínimo; ter os recursos de que precisamos. A questão é: se não temos dinheiro, de facto o que fazemos é explorarmo-nos a nós mesmos. O custo verdadeiro é maior que o dinheiro gasto, porque as pessoas não foram pagas para actuarem no filme. Não podemos esperar fazer isso. Mas temos liberdade, porque ninguém quer saber. Eles não investem uma boa maquia e um produtor vem aí… Não são as condições que a maioria das pessoas enfrenta, mas se temos as condições temos de agarrar essa oportunidade e temos de nos mentalizar de que somos pessoas livres. A nossa limitação é aquilo que temos. Se temos o equipamento, pessoas, talento, está tudo bem.
Se não têm dinheiro e não estão no sistema, eu noto, nalguns casos do cinema independente americano, que é muito difícil fazer uma carreira e realizar muitos filmes. Morris Engel fez três filmes, Sidney Meyers poucos filmes.
E são filmes que sugerem – na maneira como pessoas da tua geração os valorizam – que eles podiam continuar. “Porque não pudeste continuar?”. Mas nessa altura a recepção do filme estava restrita às limitações e à visão de pessoas que controlavam os filmes. Não havia qualquer apoio institucional; não havia sequer um exemplo do que conhecemos por todo o mundo. As pessoas não faziam lobbying ou campanhas: “O filme precisa de apoio, é uma coisa importante”.
Sentiu isso: queria fazer mais mas não teve apoio?
Não. Eu tinha um filme preparado para depois deste filme [Bless Their Little Hearts]. Precisava de aparecer com outro filme. Tinha o projecto. Tinha um bom livro de um escritor afro-americano. Tinha a cooperação de uma agência bastante grande e de uma televisão pública. Tinha o apoio de uma instituição de uma grande marca na televisão pública. Mas eles não conseguiram encontrar parceiros estrangeiros; eles não conseguiram encontrar todo o dinheiro que era requerido para se fazer o filme. Não era um filme onde eu pudesse dizer “Eu podia fazer por esta quantia”, porque era um filme onde eles estavam a pôr em risco dinheiro, logo, eles precisavam de saber que nós tínhamos a quantidade adequada para fazer o filme e eu tinha de ter uma equipa, tinha de pagar a um elenco e tinha de tomar algumas decisões. Eu insisti sempre que queria trabalhar com as pessoas com as quais havia trabalhado e que conhecia. (…) Mas depois o filme não aconteceu porque a agência faliu. A certa altura, no começo dos anos noventa, fiquei deprimido, não reconhecia isso e pus isso de lado. Então decidi: “Ok, eu não quero perseguir aquilo, não quero passar por tudo isso de novo. Logo, eu preciso de encontrar uma maneira de trabalhar”. Na realidade, ao dar aulas no curso de fotografia descobri algo olhando para as fotografias de amigos, muitos deles eram escritores, o mais bem sucedido era Allan Sekula. Ele e os meus colegas foram inspiradores, porque conseguiam conceber projectos para si e eles teriam um conceito, uma ideia, e muitas vezes tinham apontamentos para o seu trabalho, mas eles iriam filmar. Assim decidi: “Eu gosto de fazer imagens em movimento, estes brinquedos, estes Hi 8 e este formato vídeo pequenino… Vou começar do zero, vou começar a fazer coisas com isso e para mim mesmo, para as minhas próprias razões”. Comecei a fazer isso. Depois consegui uma comissão para fazer um vídeo com o Allan. Fiz um projecto em vídeo sobre a construção do Disney Concert Hall de Frank Gehry. Era para uma exposição. Fiz isso e então decidi que tinha um filme que queria fazer sobre um poeta da era beat, ele era uma figura radical em São Francisco chamado Bob Kaufman. Vim a saber que no início da sua vida tinha sido um sindicalista, marinheiro, foi proscrito [blacklisted] e deixou de navegar. (…) Interessava-se por música bebop e pelo surrealismo. Ele re-emerge em 1958 como poeta. Escreveu uns três livros em toda a sua vida. Tornou-se poeta, um poeta particularmente radical e interessante. Este tipo morreu há alguns anos, 1986. Decidi que queria tentar fazer um filme sobre ele, para que as pessoas o pudessem descobrir. Estou a finalizar a montagem disso e esta é a minha maneira de regressar. Alguns dos meus alunos e outras pessoas disseram: “Devias fazer outro filme”. Penso que quando o Charles [Burnett] voltar do trabalho na Argélia, iremos falar e ver se há alguma coisa que queiramos fazer ou possamos fazer. Começaremos a falar, mas talvez tente outra coisa antes.
Falando em “começar de novo”, desde que foi restaurado e lançado em DVD, Killer of Sheep e todo o trabalho de Burnett conquistaram a atenção de novos cinéfilos, sendo uma das mais incríveis ressurreições da história recente do cinema. Por que razão se demorou tanto tempo a reconhecer Killer of Sheep como um dos mais audaciosos filmes da história do cinema americano?
Penso que por causa da cultura e dos valores e do poder do cinema comercial americano. E por causa do tipo de filme que é… mesmo que os principais críticos reconheçam Burnett como um dos mais dotados e originais criadores de filmes nos Estados Unidos. Periodicamente há artigos nas principais publicações que o dizem. Ele tem um McArthur Genius Grant [bolsa de génio McArthur] e venceu uma série de prémios. As pessoas não tiveram uma oportunidade, porque o filme não teve um lançamento. Uma geração inteira de entusiastas do cinema não tiveram a oportunidade de conhecer o filme e quando eles tiveram essa oportunidade o filme disse-lhes algo. Eles encontraram coisas úteis, inspiração nele. Surpreendeu muita, muita gente. Foi assim que aconteceu. As pessoas têm argumentado que foi importante e bom desde que foi feito, mas quando o fazemos fora do sistema e contra o sistema… não que ele se tenha sentado e dito “Sou contra o sistema!”, mas porque ele tinha algo de original a dizer. Isso não era aceite. Como disse, os críticos, críticos mais velhos, como o senhor Augusto [M. Seabra] e outros, conhecem o filme. Logo, quando o filme chegou eles puderam ter um diálogo com os mais novos. As pessoas responderam fenomenalmente.
É importante que esteja a falar de críticos e académicos, porque uma das minhas questões tem que ver com The Exiles (1961) de Kent MacKenzie, que, por exemplo, foi reconhecido por Charles Burnett como um dos maiores trabalhos do cinema independente norte-americano. O Billy trabalhou com Thom Andersen no documentário Red Hollywood, fazendo a narração em over. Algumas pessoas dão todos os créditos pela ressurreição de The Exiles à sua aparição no documentário de Thom Andersen Los Angeles Plays Itself (2003), onde o seu nome também não fica esquecido. Agora fazendo a pergunta a si enquanto académico do cinema, podemos dizer que este é um dos papéis dos críticos, cinéfilos ou historiadores do cinema: o de reparar as lacunas da história?
Foi o caso na criação de Los Angeles Plays Itself. Esse filme tornou-se conhecido e desejado por pessoas em todo o mundo. Outro homem que dá aulas na Universidade do Sul da California, David James, tem escrito muito sobre esta contra-história do cinema. Ele tem um livro, Allegories of Cinema, e tem um livro sobre Jonas Mekas. Penso que ele editou os escritos de Jonas Mekas. Ele é o homem que decidiu: “Ok, onde é que podemos encontrar os elos que faltam na história do cinema para lá do conhecimento dos últimos quarenta anos?”. Ele começou a procurar filmes de estudantes em arquivos da Universidade do Sul da California. Escreveu muito sobre cinema em Los Angeles e o cinema avant-garde do tempo de Vorkapić.. David James foi uma das principais pessoas a descobrir o trabalho de Kent MacKenzie. Ele e o Thom descobriram-no simultaneamente. As pessoas que amam o cinema responderam a esta revisão. Talvez estejamos a viver um período estranho e necessário. Há mais e mais restauros que os arquivistas lançam para o mundo. Este é o momento em que estamos. Não sei quanto tempo durará. Eu penso que seria necessário durar para sempre: a luta contra o tempo! Assim, eu penso que o Thom desempenhou um papel porque o filme foi mostrado. As pessoas descobriram não só o seu filme e tese como também descobriram outro filme.
Thom Andersen disse em entrevista: “Espero que Bless Their Little Hearts de Billy Woodberry tenha, no mínimo, um lançamento em DVD. Penso que seria tão merecido como outros. Algumas pessoas vêem Bless Their Little Hearts como um filme ainda maior que Killer of Sheep. Eu penso que é do mesmo campeonato, por assim dizer”. Concorda que os seus filmes fazem parte desta história do cinema em falta?
Isso compete a outros decidirem. Mas as pessoas são generosas com o filme. Elas exibem-no e isso mantém-no vivo. Ele deverá ter um lançamento. Está preservado e restaurado. Pelo menos, eles podem pô-lo à consideração e decidir por si mesmos. Daqui a mais vinte anos veremos se as pessoas encontram algo de interessante nele.
Está agendado o relançamento do seu filme em DVD e nas salas?
Sim, ele tem o mesmo distribuidor [de The Exiles, Killer of Sheep e dos filmes de Rogosin]: Milestone. Estão a libertar [os direitos de] a música e a preparar tudo. Quando estiver ponto eles farão o lançamento.