Pouco tempo antes de morrer, Roger Ebert ainda escrevia críticas de cinema. Muitas e quase sempre com uma enorme disponibilidade, rara para quem já havia visto tanto cinema. Uma das últimas foi a Movie 43 (Comédia Explícita – Movie 43, 2013). Explicava Ebert nas primeiras linhas dessa crítica, “Since 1999 I’ve been carrying a blue pill in my pocket, holding onto it for the moment when I’d truly need it. The pill, I was told, would instantly erase the memory of any movie — but just the one movie, just the one time”. Confessava-nos poucas linhas depois que, apesar de muito tentado anteriormente (por algumas obras de Adam Sandler e não só), fora com o comboinho dos irmãos Farrelly que se decidira a tomar o químico. Entre os efeitos adversos do comprimido e os efeitos devassos do filme (a meu ver injustamente enxovalhado – não fossem os capítulos de Peter Farrelly e James Gunn de sublime gosto duvidoso), a verdade é que Ebert foi-se destas bandas. Melhor para ele, que deparando–se com este Cadences obstinées (Cadências Obstinadas, 2013) já não poderia recorrer à dita pílula – usada extemporaneamente – e teria que viver com a memória deste filme de Fanny Ardant para o resto dos seus dias. Que os meus sejam curtos, é o que desejo.
Mas falando verdadeiramente sinto que há algo de profundamente onírico neste filme, onírico no sentido de um sonho do qual se acorda sem se saber muito bem o que se passou. Depois do correr dos créditos, Cadences obstinées tem o poder de não deixar memória, de ser profundamente esquecível – de tão arbitrário e banal que consegue ser – como um sonho (ou um pesadelo que não chegou sequer a incomodar ou a deixar uma marca que seja). Retomando a senda dos comprimidos, posso dizer com felicidade que a luz mortiça deste início de primavera que aguardava por mim à saída da sala funcionou como a pequena cápsula rubi (não é azul, eu sei) que Reeves tomava em The Matrix (1999) para acordar da moinha tecnológica induzida pelas máquinas – ou que originalmente Schwarzenegger tomava em Total Recall (1990) com propósito equivalente. Há pois algo de profundamente surpreendente neste filme de Fanny Ardant, tudo é tão inconsequente que sentimo-nos, qual Neo ou Douglas Quaid, num desses mundos onde apesar de as formas nos serem familiares o que as liga soa falso, onde a aparente coesão das coisas se desfaz a cada movimento, a cada enquadramento e a cada raccord.
E porque me parece que a analogia com produtos medicamentosos safira ainda não ficou completamente explorada, prossigo. Talvez o que falta a Cadences obstinées seja de facto um auxílio farmacológico; seria curioso se se oferecesse à entrada de cada sessão (em jeito de campanha de marketing agressivo) um dos outros comprimidos azuis. Talvez aí o coração batesse de facto mais depressa ao deparar-se com o romance entre Asia Argento e Nuno Lopes, talvez as mãos suassem com um Franco Nero de mafioso ou os lábios formassem um sorriso com a bonomia de Gérard Depardieu. Mas nem mesmo assim (como poderiam?) quando Depardieu faz um cameo estendido a personagem de três cenas ou quando Nero representa com o maior dos desinteresses. Sente-se o frete em todos os instantes, tanto dos actores que (salvo Asia e Nuno Lopes) vêem os seus papéis reduzidos a apontamentos (Laura Soveral que não abre a boca, Marcello Urgeghe que surge numa cena toda ela desenhada esquematicamente – que termina em modo reclame com um travelling-lateral-com-motorizada-e-amantes-agarrados -, ou ainda Mika que faz as vezes de mobiliário numa vernissage que faz chorar de tão canhestra), como de tudo o resto, veja-se os encontros entre Nero e o fiscal que devem ter sido despachados numa tarde de rodagem (nem mudam o guarda-roupa, apesar da mudança dos dias) ou as sequências no hotel que se resumem a um quarto e uma sala aos quais se muda a pintura e pouco mais.
Não duvido do amor de Ardant pelo projecto (esse sim, o único sentimento que se sente como verdadeiro) mas sabemos como funcionam as mãos quando o coração as comanda: hesitam, tremem, duvidam. Ardant quer fazer imensos filmes com este filme, quer ter imensos personagens, quer ser poética e teatral (com plumas de plástico esvoaçante e iluminação exagerada) ao mesmo tempo que quer um naturalismo sensível, as explosões de um dramalhão novelesco e a obsessão de um drama psicológico. Tudo em várias línguas, numa torre de babel de géneros e intenções.
Fica-nos (apesar do efeito do comprimido) a memória de uma estranha fixação na figura de um aquário, elemento central do filme, que faz lembrar um outro – em tudo o resto semelhante, e neste pormenor também – onde era um candelabro de cristal que tomava essa função de catalisador patético, Quinze Pontos na Alma (2011): filmes onde a ideia de um realizador a remar contra a corrente ganha um novo sentido e onde o que daí se produziu é cabal prova dessa situação.