Em vésperas daquela que será apenas a sua quarta edição, marcada para os dias 28, 29 e 30 de Março, os Encontros Cinematográficos do Fundão já têm um nome e uma identidade firmadas. Em tempos de superabundância de festivais de cinema, de uma progressiva perda de contacto com uma cinefilia que seja indiferente às lógicas do “evento grande”, os Encontros destacam-se pelo seu espírito informal, quase boémio, e uma programação que não se distrai com a espuma dos dias, nem tão-pouco sucumbe às categorizações fáceis que afastam o “fazer” do “ver” e do “falar” cinema. Inspirado por tal movimento de não-conformidade com modas e à luz desta tentativa de retornar à essência da cinefilia (traduzida na expressão simples desse desejo de descobrir e dar a descobrir), o À Pala de Walsh quis falar com o coordenador deste acontecimento que tenderá sempre a aparecer “ao lado da ‘agenda'”. Carlos Fernandes é o grande maverick dos eventos do cinema. Na realidade, como o leitor constatará pelas suas palavras nesta entrevista realizada por email, os Encontros parecem cumprir-se na negação da própria ideia de “evento”, nomeadamente por via da singularidade da proposta de fazer do convívio reflexão e da reflexão convívio. Um trabalho de resistência em nome do amor à arte e à amizade do, ou em torno do, cinema.
Como surgiu a ideia e de que modo conseguiram pôr em prática estes especialíssimos Encontros Cinematográficos?
Foi evidentemente por causa dos amigos. Na Luzlinar, queríamos ter uma actividade regular ligada ao cinema. E quando pensámos fazer algo novo, normalmente, tentámos responder a alguma coisa. Não que fosse um objectivo em si mesmo, mas havia insatisfação. Depois, era necessário experimentar a ideia para ver se resultaria como pensávamos. Então, fizemo-lo da maneira mais prática e com menos riscos. Começámos a ver que amigos tínhamos. Entre alguns cineastas amigos da Maria Lino, encontrámos o Benjamin Geissler, filho de um amigo escritor (Christian Geissler), que tinha estado durante um longo período isolado numa quinta do Feital. Da longa lista da Barbara Spielmann, onde se incluía o Moullet ou o Courant, chegámos ao Joseph Morder. Queríamos um português que ainda faltava. O Frederico e a Marta do Cineclube da Guarda sugeriram o Manuel Mozos, que não era amigo de ninguém próximo, mas que alguém acabou por conseguir contactar e fazer essa ligação. O Frederico sugeriu o Edmundo Cordeiro, que era seu professor na Lusófona, para apresentar o Manuel. Depois, escolhemos os filmes deles e eles os que nos queriam mostrar, como hoje se mantém. Por fim, foi preciso pôr toda a gente a falar entre si e connosco. Tinham que escrever textos sobre todos filmes, fazer entrevistas, alguns ainda conhecerem-se melhor, etc. Tudo isto vários meses antes e com prazos, pois ainda era necessário fazer muitas traduções e editar o primeiro Jornal dos Encontros a tempo. Os primeiros Encontros foram organizados conjuntamente com o Cineclube e o Teatro Municipal da Guarda, cujo director também era um amigo.
Penso que vários aspectos distinguem este evento da maioria dos festivais de cinema que se têm multiplicado como cogumelos país afora. Um desses aspectos é o facto de os seus Encontros se direccionarem sempre ao contacto pessoal ou à conversa informal com os convidados, algo que, do meu ponto de vista, é absolutamente inviável nos festivais de grande dimensão. Em que medida esta dimensão humana, quase boémia, é necessária à vida do cinema e da cinefilia?
As pessoas podem sempre escolher. Se “multiplicam” o que costumam fazer é certamente porque gostam. Como não é o caso, sempre existe outro caminho. Os Encontros Cinematográficos não são, nem pretendem ser, um festival de cinema, nunca quisemos isso. E tenho a certeza que alguns dos nossos convidados nem aceitariam vir se os Encontros tivessem características semelhantes. Sem pódios, prémios ou hierarquias, queremos simplesmente juntar as pessoas e conversar sobre o que todos gostamos. Recebemos os convidados como amigos, por isso a informalidade, depois o cinema fica no centro.
O outro aspecto que me parece distintivo do seu evento é a articulação que faz, sem hierarquias, entre jovens cineastas e “pesos-pesados” do cinema, tal como entre reflexão (ou crítica) e acção (ou realização). Por exemplo, nesta edição contam com nomes de proveniências tão diferentes (ou, na verdade, não) como Luís Miguel Oliveira, Pedro Costa, Miguel Marías, José Oliveira, Manuel Mozos e Pierre León. Quer falar-nos um pouco sobre esta espécie de tentativa de quebrar fronteiras e fazer do cinema um fórum aberto, sem hierarquias?
Os Encontros são sobre o cinema, todos fazem parte dele, nós queremos isso. Quando trabalhamos numa coisa séria, se gostamos do trabalho e das pessoas, tudo se harmoniza de maneira natural. Mas, respondendo de outra maneira: o Luís Miguel Oliveira está desde a segunda edição. O Pedro Costa acaba de chegar. O Miguel Marías é um convidado antigo que só agora pôde vir. O José Oliveira e o Manuel Mozos, um como espectador e outro como convidado, chegaram na primeira edição e ficaram. Para o Pierre León, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia estava à espera da oportunidade, já os tinha convidado antes. E a Mercedes Álvarez foi apresentada pelo Miguel Marías. Na realidade, a preparação desta edição começou há cerca de ano e meio. Há quatro ou cinco meses que os convidados de cada bloco estão à conversa, entre eles e comigo. Entretanto, “entrevistaram-se” e escreveram sobre os filmes que vamos ver. Parte significativa deste resultado será visível nesta edição do Jornal dos Encontros (seguiu mesmo agora para impressão). Os mais impacientes podem comprar o Jornal do Fundão na quinta-feira e ler em primeiríssima mão a conversa entre o Pedro Costa e José Oliveira. Na sexta, já podem ler todo o Jornal na versão on-line ou impressa.
O terceiro aspecto que considero raro e que caracterizará os seus Encontros é a exigência da programação, a qual passa, entre outros aspectos, pela sua independência face a qualquer predominante “agenda mediática”. Parece haver um consciente e muito pensado trabalho de programação como forma de resistência. E nesse sentido calculo que a vinda este ano de Pedro Costa será um dos pontos mais altos da história dos seus Encontros. É esse o perfil que procuram nos vossos convidados, sejam eles cineastas, teóricos ou críticos?
Não procuramos nenhum perfil, nem andamos a “ajeitar” candidatos numa grelha e teorizar com isso, nem a brincar aos programadores. Também estamos naturalmente ao lado da “agenda”, mas sem esforço ou necessidade de resistência. Temos sorte, ainda podemos fazer o que desejamos. É tudo muito mais simples, procuramos apenas as pessoas de que gostamos, como é o caso do Pedro Costa. Há anos que acompanhamos o seu trabalho, ainda no tempo em que não víamos por lá muita gente. O José Oliveira [autor dos blogues Sempre em Marcha e Raging-b], que agora o vai apresentar, conhece profundamente toda a sua obra. O Mário Fernandes diz que Juventude em Marcha (2006) é a última grande obra-prima do cinema português. Então, em Setembro, no dia do lançamento de Casa de Lava – Caderno de Pedro Costa, estava na Cinemateca com o Manuel, a Patrícia Silveirinha e o Frederico Lopes, a preparar a 1.ª edição dos Filmes Proibidos e surgiu a possibilidade de falar com o Pedro Costa para o convidar para estes Encontros. Mais tarde começámos a falar, vieram então os filmes e as conversas… Não existe uma programação predeterminada, perseguimos unicamente uma ideia. Depois, ao longo do ano vamos conversando, os convidados e os filmes vão acontecendo naturalmente. Talvez seja este o aspecto de maior exigência.
Que reacções estes Encontros têm merecido, dos participantes, espectadores e população do Fundão?
Os participantes voltam sempre de uma ou de outra maneira. Regressam para apresentar outros, simplesmente como espectadores, ou acompanham de outra forma. Para os públicos, onde se incluem as populações do Fundão e da Covilhã, estamos a fazer o caminho. Também vão sempre algumas pessoas de Lisboa, sobretudo amigos. E tem sido boa a experiência com os estudantes de cinema da UBI.
Pedia-lhe que destacasse dois ou três momentos-chave na ainda curta vida dos Encontros.
Desde a primeira edição que os Encontros estão repletos de momentos importantes, como por exemplo: ter conhecido o Manuel, que na edição seguinte nos apresentou a Manuela Serra; a vinda do Joseph Morder, de Super 8 em punho; o Boris Lehman e a sua auto-ficção; o Bruno Andrade, antes uma espécie de “ser virtual” [autor do blogue O Signo do Dragão e editor da revista de cinema Foco], que depois atravessou um continente e um oceano para nos fazer descobrir o Vecchiali; a Rita Azevedo Gomes, que esteve connosco em condições de saúde muito difíceis, mas que voltou nos “Filmes Proibidos” e que voltará sempre; o Bloco Especial com a integral de ficção do Manuel Mozos que apresentámos na segunda edição, etc. Mas o mais importante foi mesmo a generosidade dos convidados que aceitaram simplesmente vir conversar connosco.
Como projecta o futuro deste evento?
Não sei nada do futuro. No presente, a pareceria da Luzlinar com Município do Fundão e as colaborações da Cinemateca e do Curso de Cinema da UBI, prometem todas as condições para continuar a conversar. Sendo assim, voltaremos com os Encontros Cinematográficos, preparamos já a próxima edição. Continuamos também o Ciclo de Cinema Português – Filmes Proibidos, integrado nas Jornadas de Cinema em Português da UBI e com o apoio da Cinemateca, há ainda muitos filmes e convidados para apresentar. E, se pudermos, esperamos anunciar este ano ainda outra ideia. Mas por de trás destas instituições há sempre pessoas extraordinárias. É com elas que queremos continuar a conversar.