Na questão dos jogos florais, há que ir com cuidados e poucas levezas. Opte-se antes pelo catenaccio da abordagem e não por um desenfreado ataque ao objecto do desejo; caso contrário, poderá haver problemas nos departamentos mentais, cardíacos e estomacais. É, pelo menos, o que me estão a recitar ao ouvido, pois de tais matérias sou tão entendido como o Mário Augusto o é de cinema esloveno dos anos trinta. Mário Augusto que já deve ter batido o recorde de vezes em que a expressão “magia do cinema” foi proferida e/ou escrita.
Os úteis conselhos do parágrafo acima poderiam ter sido de bom usufruto para a personagem de Jacques Perrin em La ragazza con la valigia (A rapariga da mala, 1961), o terceiro filme do agora “ressuscitado” Valerio Zurlini, que mesmo assim lá vai continuando na sombra dos mamutes de referência das décadas de quarenta a sessenta. E mesmo que a distração visual e sentimental dê pelo nome de Claudia Cardinale, isso não serve de desculpa às evidentes precipitações de menino Jacques, que irá fazer setenta e quatro no próximo mês de Julho.
Zurlini, que em Estate violenta (Um verão violento, 1959) tinha rebentado com vários termómetros melodramáticos, desce um bom bocado nos contornos febris nesta sua obra, resultado das leves comédias introduzidas pela personagem da Claudia, uma showgirl em versão rural e menos selvagem do que a Elizabeth Berkley de trinta anos mais tarde. Acrescente-se, também, os novelos de “filme de classe”, que por mais finos que sejam, estão visíveis e ao alcance de quem possua o mínimo de diopetrias percepcionais.
O que se mantém é o male gaze, aqui com Perrin, em Estate violenta com Jean-Louis Trintignant. Mas atenção: isto é male gaze nada voyeurístico e moralmente abusador, mas antes provido das mais puras das intenções e doçuras. A este propósito, já estamos a imaginar os inimigos de Kechiche e de La vie d’ Adèle – Chapitre 1 et 2 (A Vida de Adèle, 2013) a massacrarem o tunisino com repetidas visões dos planos das faces de Trintignant e Perrin, pouco antes de o enviarem para dentro de um vulcão em fúria, por onde navegam em fervoroso lume outros perversos. Por falar nisso, é melhor ir ouvir o I Follow Rivers, da Lykke Li.
Volte-se, então, ao primeiro parágrafo e suas bondosas tácticas de romance, e agora mostre-se uma sequência de La ragazza con la valigia para se provar de quão justos e acertados elas são. É uma pena, contudo, que este vídeo apenas contenha dois minutos de uma sequência de alguns dez, pois assim trunca-se o the whole picture. Não obstante, registamos as diversas evidências ali presentes: o rosto de Cardinale, grave como não antes tinha aparecido; a apreensão de que o menino está maluquinho por ela, e há que suavizar a situação com novo recurso a espalhafato verbal, para assim se salvar a face; o tempo que Claudia demora a percorrer o seu caminho até Jacques, em justo plano geral, que isto são assuntos do pudor; e a tragédia sixties-pop de Adriano Calentano com Impassivo per te, a antecipar em uma hora o destino das personagens.
La ragazza con la valigia merece três coisas. A primeira, é que seja recordado de tempos a tempos, que o cinema não é apenas negros como escravos ou como piratas do mar (Armond White, grande como não há muitos). A segunda, é que seja recordado de tempos a tempos, que o cinema não é só pimbalhada “no espaço” ou retratos caricaturais de gentes de um determinado estado norte-americano. E a terceira, é que seja oferecido, de tempos a tempos, aos adolescentes com ilusões nada condizentes com os ritmos da vida moderna. Trabalho, casar, filhos e toca a andar.
http://www.youtube.com/watch?v=6EcRltnEtvc