“Le soleil ni la mort ne se peuvent regarder fixement”. A máxima é de Rochefoucauld e é dita em over pelo “Rei Sol” Luís XIV no final de La prise de pouvoir par Louis XIV (A Tomada do Poder por Luís XIV, 1966) de Roberto Rossellini. Também ao cinema não há muitos desafios maiores do que filmar o sol, mas é muitas vezes pelo ecrã que o conseguimos olhar de frente demoradamente, fixá-lo com o nosso olhar amedrontado, ferido de tantas vezes ter tentado…, e descrente no milagre do mundo. Mas antes de ser dele – do nosso olhar – ele será uma imagem – do cinema. Propomos uma reaproximação ao sol do nosso cinema-sol, Deus de cada uma e de todas as palavras deste miradouro cinéfilo chamado À pala de Walsh, Deus de todas as sopas que aqui cozinhamos e que agora nos dá banhos de luz. Fixemos, assim, o reino absolutista da luz e seu movimento.
Le rayon vert (O Raio Verde, 1986) é a viagem interior de Delphine pelos vários destinos que lhe vão surgindo. Em certo sentido, ela (e a câmara) procura(m) o seu “conto de Verão”, ou melhor, a companhia de um amor que reconforte a sua alma atormentada (a câmara tem alma em Rohmer). Por outras palavras, Delphine (e a câmara) anda(m) de um lado para o outro à procura do seu “contra-campo”, que pode ser um rapaz, mas que aqui é, acima de tudo, o fenómeno meteorológico que dá nome ao filme (e a um livro de Júlio Verne): o raio verde. Em condições especiais, o pôr-do sol termina num raio luminoso de cor esverdeada que se destaca no horizonte. Para os amantes, este fenómeno é de extrema importância: quem o testemunha ganha a faculdade de “ver” os seus sentimentos e os sentimentos dos outros. No fim do filme, Delphine e o rapaz que acaba de conhecer observam o horizonte; ela espera ansiosamente por um sinal dos céus que a salve de umas férias mal passadas e ele, desorientado, interroga-se sobre as razões para tanto suspense. Rohmer filma, em contra-campo, o céu (a outra personagem) e encena harmoniosamente o encontro com o amor, entre a câmara e o raio verde tal como entre Delphine e o rapaz que acabou de conhecer. Graças a esse gesto convergente de realização, o final de Le rayon vert confere a Delphine tal como ao espectador a capacidade de amar.
Luís Mendonça
No confronto final, ajuste de contas, McGregor sequestra o pai de Carano na sua casa de praia, traz o Tatum como ajudante e mais um capanga. Ela corta a corrente eléctrica, obrigando tudo a uma escuridão quase total, que transforma a invasão da casa num bailado de pancadaria quase imperceptível. Sabemos que a relação dela com Tatum é complicada (depois de irem para a cama ela partiu-lhe o braço – e o coração também), mas é a coisa mais próxima de algo romântico neste Haywire (Uma Traição Fatal, 2011) – quem sabe o melhor dos Soderberghs. Pois bem, McGregor, que é um malvado, dá-lhe um tiro, ao Tatum, e aqui é que está o cerne, ele foge e ela fica. Não há cá Pietás e coisas dessas trágicas do I’m soo cold, nada disso, Tatum vai-se esvaindo num total breu, quase não lhe vemos a cara, a dela também não se vê – está toda pintada de graxa – não se chora mas nem por isso doí menos a perda. Aquilo que é o autorismo em Soderbergh é esta compreensão de que para manter os espectadores a salvo a câmara não se deve sujar, mais que isso, faz-se do desapego (ou alheamento, ou desafectação, ou desprendimento) um exercício de preservação emocional, de amparo dos seus personagens. Depois ela persegue o McGregor e a cena é na praia, ao pôr do sol, planos curtíssimos, uma chapada de luz. A iluminação como mecanismo de protecção, aquele que merecia carinho é escondido, no escuro, o vilão por ser lado não merece tal tratamento, que morra ao sol! Cheio de pancada!
Ricardo Vieira Lisboa
A escolha do filme é mais do que óbvia, até tem um sol no nome. A escolha da imagem não o é menos: um sol e um título que o contém a sobrepor-se ao mesmo (um sol ao quadrado, portanto). No entanto, por muito óbvias que as escolhas sejam, não surgiram por facilidade. Quando fui informado que a sopa deste mês seria feita de sóis, esta imagem veio-me imediatamente à cabeça, não directamente da minha experiência como espectador [embora já tenha visto Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946) umas quantas vezes e goste muito do filme], mas sim por interposta pessoa. Na extraordinária série A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, a imagem aparece logo nos primeiros minutos, manifestação da paixão assolapada de Scorsese pelo filme, que terá visto incontáveis vezes (bem mais do que eu) desde a infância, manifestação também do seu amor pelo cinema, que tomei pelo meu (e talvez seja essa a razão de eu próprio gostar tanto do filme). Por felicidade, não contraria a minha vontade de ter um sol de papelão como homenagem aos belíssimos cenários pintados de outrora, quando as dificuldades em filmar o astro (e outras, tantas outras) eram debeladas por mãos de artistas.
João Lameira
Lembro-me que a primeira vez que vi Toni (1935) de Jean Renoir, li uma frase muito bonita que me inquietava. Era qualquer coisa como: “uma tragédia onde o sol toma o lugar da fatalidade” e foi João Bénard da Costa que, na folha de sala, citava Truffaut numa crítica ao filme que escrevera para os Cahiers. Sabe-se que se há elemento no cinema de Renoir ele é a água, de onde surge (e para onde vai) o vagabundo Boudu, ou a metáfora da circulação da vida em The River (O Rio Sagrado, 1951) só para ficar nos mais óbvios. Toni, espécie de neorrealismo italiano avant la lettre (sendo que aqui os únicos italianos são o assistente de realização, o jovem Luchino Visconti e os emigrantes que vêm trabalhar para a vilazinha do sul da França Les Martigues) até tem a dita água, o lago onde Marie se vai tentar afogar e até segue, como nos seus filmes de água, uma ideia de circulação. O filme volta aos carris do comboio, que trazem mais emigrantes, como no início, cheios de canções e certezas de felicidade. Uns chegam outros vão, morrem. Mas se há aqui essa circulação que luta contra uma ideia de romantismo, nesta história de “ménage à quatre” (outra vez Truffaut) é sob a imobilidade do sol – forte, natural, impassível face aos grandes amores e às mortes trágicas – que se podem ver a textura da pele dos camponeses e dos operários, Toni a chupar o veneno de abelha das costas de Josefa (na mais erótica e celebrada cena do filme) ou ela e Albert (o molenga gorducho que viria a ser seu marido) a tentar dobrar, em flirt desajeitado, um lençol. É esse sol que vai decaindo à medida que se sucedem as cenas de noite (em que Toni sai de casa e vai dormir para o monte) e que volta no dia seguinte, no último da vida de Toni. É um sol que a tudo e todos ilumina, os que vivem e os que morrem, que nasce contra a ideia de holofote, que é como quem diz, que encontra a poesia no fim do simbolismo trágico.
Carlos Natálio