João Garção Borges é, sem sombra de dúvidas, um dos últimos programadores a corporizarem uma verdadeira política cultural na televisão pública. Foi pela sua mão que a curta-metragem ganhou um espaço regular na televisão portuguesa. Falo do programa Onda Curta, fundado em 1996 e recentemente levado à extinção pela actual direcção da televisão pública. O abrupto sad ending não faz jus à história deste espaço de culto onde se fomentou o gosto pela descoberta do cinema, através da celebração de um formato que, muito graças a si, foi ganhando prestígio e tradição entre cinéfilos e futuros realizadores portugueses. Nesta entrevista, que realizei por email, faz-se o balanço de 18 anos de Onda Curta e procura-se apurar as razões por trás do seu desaparecimento na grelha da RTP2, canal onde cada vez mais o cinema é tratado como persona non grata.
Nas últimas semanas, eu e amigos cinéfilos temos trocado mensagens de apreensão a propósito da ausência do programa Onda Curta na antena da RTP2. Como programador deste espaço histórico da televisão nacional, pode esclarecer-nos sobre as razões desta ausência e em que medida podemos confiar no regresso do programa à grelha do canal?
Em primeiro lugar preciso de enquadrar a ausência do Onda Curta na grelha de programas da RTP2, que se concretizou a partir da primeira semana de 2014, como uma das consequências da minha rescisão com a RTP no contexto do Plano de Apoio a Saídas Voluntárias, aberto, para os devidos efeitos, no início de 2013.
Esta rescisão, assinada em Outubro de 2013, só não significou automaticamente a saída do Onda Curta da grelha nesse mesmo mês ou nos meses imediatamente a seguir porque, como sempre assumi com a necessária antecedência a programação, produção e realização do programa, deixei o Onda Curta pronto para emissão até ao final de 2013.
Na verdade, existia um grupo de filmes já contratados para o Onda Curta que, por razões de planeamento financeiro da grelha, permaneciam inéditos a par de outros cuja exibição não oferecia problemas por serem segundas exibições a custo zero. Existiam ainda alguns filmes portugueses seleccionados a partir do grupo de curtas cofinanciadas pelo ICA e pela RTP que, como sempre o fiz na qualidade de gestor da respectiva carteira, podia, devia e queria integrar na programação do Onda Curta.
Por uma questão de respeito para com o público que sempre me acompanhou, por uma questão de princípio relacionado com a autonomia e independência que sempre defendi para a minha actividade profissional e por questões muito práticas de gestão da carteira, posso dizer que não ficou por exibir nenhuma das curtas contratadas exclusivamente para o Onda Curta.
Infelizmente, o mesmo não sucedeu com parte das referidas curtas portuguesas que, por diversas razões práticas, sobretudo relacionadas com os prazos acordados para exibição, não puderam ser exibidas até Dezembro de 2013 e que, salvo melhor informação, continuam por exibir.
Na verdade, confesso que não sei qual a política de exibição de curtas e mesmo de outras matérias relacionadas com o cinema no planeamento da actual ou futura grelha de programas da RTP2. Mas, pelo que podemos constatar, se alguém pensou no assunto não está a ser bem sucedido. O que posso dizer é que ninguém me contactou para manter o Onda Curta na RTP2 para além de 2013, nem antes nem depois da rescisão. Entretanto, como o Onda Curta sempre foi um programa de autor e posteriormente uma marca associada não apenas ao pequeno ecrã mas igualmente a um conjunto de parcerias nacionais e internacionais de que fui sempre o coordenador, sem a minha participação dificilmente poderão voltar a ver o Onda Curta na RTP2.
Isso significa que o Onda Curta pura e simplesmente encerrou a sua actividade? Não, de modo nenhum. Desde há muito que vinha considerando a hipótese de avançar para novas fronteiras de programação no sentido de ampliar e diversificar a oferta de cinema e não só através das potencialidades abertas pelas novas plataformas que, cada vez mais, fazem parte do nosso quotidiano. Por isso mesmo, estou neste momento a organizar a integração do Onda Curta numa nova marca da curta-metragem, o SHORTSPLANET, no que pode ser considerado um upgrade global para uma marca e um formato com 18 anos de experiência. Irei fazê-lo com a velocidade necessária e suficiente para manter a chama acesa de um histórico que muitos continuam a reconhecer e valorizar de forma solidária. Mas irei fazê-lo sem pressas e sobretudo na sequência de uma profunda reflexão sobre o modo de compatibilizar este novo projeto com anteriores e novas parcerias.
No site da RTP2 lê-se, na página do Onda Curta, o seguinte: “Desde a primeira exibição em 1996 que o ONDA CURTA defende uma programação exigente para públicos exigentes”. Devemos ler a inconstância de uma programação de cinema, regular e estruturada, na RTP2, e agora o desaparecimento quase total de cinema no canal, como sintomas de que a programação já não quer ser exigente ou que, pelo contrário, é o público que perdeu a sua exigência por uma programação cultural sólida, de serviço público?
Não me parece que o problema esteja concentrado no público, ou melhor, nos diferentes segmentos de público que habitualmente acompanhavam a programação da RTP2 e que pelos sinais dados aqui e além permanecem interessados no valor alternativo que, apesar de numerosas contradições, continua associado ao canal e aos restantes canais de serviço público.
De igual modo, não acredito que haja um défice de interesse pelos diferentes vértices da programação cultural, mesmo quando parece prevalecer um certo conformismo e uma certa mediania de apreciação face ao que resta de sólido nesse campo anteriormente mais sistemático da programação.
Por exemplo, nos últimos meses de 2013 o Onda Curta, no horário das 23:00, conseguia os primeiros lugares das audiências, mesmo com uma programação de resistência onde não estava uma boa parte das melhores propostas que gostaria de exibir. Estava sistematicamente entre os dez primeiros do canal. Ou seja, sempre houve um público interessado nas propostas do Onda Curta e, podemos dizer, um público que militava e espero continue a militar ao meu lado no sentido de exigir uma programação onde seja igualmente clara uma grande exigência na seleção e programação dos filmes oriundos do mundo inteiro. E quero acreditar que esse público não vai desaparecer de um dia para o outro. Mas, sem um rumo certo e sem uma política de valorização da programação que faça a diferença, assim como das estruturas e plataformas que lhe dão corpo, não será fácil manter e formar novos públicos, mesmo para propostas mais convencionais.
O que realmente se perdeu, sobretudo nos últimos anos e no seio das chamadas classes A e B, foi o poder ou a vontade de criticar de forma incisiva o que antes muitos consideravam inaceitável no serviço público, nomeadamente a ausência de espaços de cinema dignos desse nome, com uma linha editorial precisa e exibidos a horas adequadas, horas agora preenchidas por uma série de reality-shows, ficções de segunda categoria e concursos de gosto mais do que duvidoso. Perdeu-se em grande medida a vontade de exigir mais e melhor. Essas e outras classes que contam para as audiências parecem estar hoje iludidas mais pela quantidade do que pela qualidade da oferta, nomeadamente a dos canais por cabo que mensalmente pagam a um preço que noutras épocas seria igualmente inaceitável.
A história do Onda Curta é já longa. São perto de 18 anos a dar a ver ao público português o melhor que se faz no domínio da curta-metragem. Sendo um formato historicamente subestimado, perguntava-lhe quais as dificuldades que enfrentou para não só levar este projecto ambicioso avante como também para o manter e vê-lo crescer como incontornável espaço de culto da televisão portuguesa.
Foram muitas, sobretudo porque, como diz e bem, o género vem habitualmente com o selo de pequeno cinema no sentido mais frágil da palavra.
Muitas vezes, até os especialistas esquecem que nos dias da invenção e evolução do espectáculo cinematográfico, no final do século XIX e princípio do século XX, o cinema era um domínio quase exclusivo da curta-metragem e que nesse contexto foram produzidas muitas obras e algumas obras-primas. Dito de outro modo, a curta-metragem é parte indissociável da História do Cinema.
Quando em 1996 avancei com a proposta de incluir o Onda Curta na grelha de programas do então Canal 2, sabia que devia considerar vários aspectos antes de fechar o acordo com a então Direcção de Programas. Entre outros, definir uma hora precisa de exibição, definir uma linha gráfica e um modelo de identificação, definir uma linha editorial e programar dentro de um espírito de exigência para públicos exigentes, sem qualquer compromisso que desvirtuasse a intenção de escolher só e apenas o que de melhor se produzia no mundo das curtas, sem limitações de género, sem limitações de nacionalidade ou ano de produção. Numa palavra, um poder editorial que não fosse poder pelo poder mas antes a base necessária e suficiente para manter a proposta ao nível de um programa de vanguarda que não esquecia os públicos a que se dirigia. Finalmente, definir e produzir um genérico e separadores próprios. No fundo, queria que as curtas fossem exibidas no quadro de um programa específico e não como carne para canhão do alinhamento que aqui e além as podia utilizar, como muitos canais ainda hoje fazem, apenas como fillers de preenchimento dos espaços vazios da programação. Por outro lado, precisamente para reforçar a identidade das obras exibidas, o Onda Curta nunca deixou de inserir uma introdução para cada uma. Primeiro, num plano mais ou menos clássico, foi a Catarina Portas o rosto e a palavra dessas apresentações. Mais para a frente, veio a Inês Meneses que, após a reformulação do formato, deixou o vivo mas continuou a ser a voz do Onda Curta. Sobre as apresentações, alguns ainda devem recordar que semana após semana o background que estava por detrás da apresentadora nunca era igual. Foi uma ideia que defendi contra a corrente dos que me diziam poder usar um cenário convencional, do género mesinha e cadeiras. Insisti que não era esse o perfil nem do programa, nem aquilo que queria para complementar o espírito das apresentações. Pouco a pouco, com o apoio da equipa no estúdio foram gravadas dezenas de imagens, autênticas composições eletrónicas feitas com a chamada prata da casa. Devo dizer que nos divertimos imenso a encontrar soluções. Na maioria das vezes, foram usados materiais que por ali ficavam, restos de outros programas. Desde pedaços de papel amarrotado, madeira ou vidros partidos, pedaços de panos velhos, lombadas de livros meio desfeitas, até manchas de humidade na parede que ampliavam e combinavam com a iluminação através de processos relativamente fáceis de manipular, relativamente rápidos, sobretudo muito baratos e eficazes no sentido de obter a componente plástica subjacente aos segmentos de introdução.
Depois veio a reformulação gráfica seguida da consolidação do formato que se manteve até Dezembro de 2013.
Entretanto, recordo que durante alguns anos o Onda Curta foi exibido paralelamente a outros formatos que de algum modo são fruto da sua presença e aceitação na grelha do segundo canal da RTP. Falo do Noites Curtas do Onda Curta e do Onda Curta Internacional, exibido na RTPi, ambos só para curtas nacionais ou produzidas nos países lusófonos. Falo da Noitada de Curtas na Noite Mais Curta, sete horas de programação internacional na noite do solstício de Verão.
Dito isto, poderão perguntar se foi difícil manter o fluxo de contratações para o Onda Curta a partir da pesquisa realizada nos mais diversos festivais e mercados nacionais e internacionais. A minha resposta até perto do final de 2012 sempre foi “não”, muito pelo contrário. Desde 1996 e até mesmo antes, nunca foi interrompido o sinal verde para continuar. Mesmo quando outras crises de natureza financeira afloraram. Infelizmente, ao longo de 2013 as contratações foram suspensas. Não obstante, em vez de interromper a programação, decidi manter ao longo desse ano o Onda Curta recorrendo a uma complicada gestão da carteira de programas e ainda a obras que estão nos arquivos e são património da RTP.
Quais os momentos mais altos que, pessoalmente, destaca da longa história do Onda Curta? [Por exemplo, eu não me esqueço da primeira vez que vi uma curta de Buster Keaton: foi The Paleface (1922), precisamente no seu programa.]
Muito cedo, no Onda Curta, procurei não ficar limitado ao pequeno ecrã, ampliando o seu raio de acção e influência ao longo dos anos através de um conjunto e rede de parcerias, prémios de aquisição, sessões especiais em sala, participações em debates e seminários, festivais, mercados e instituições nos quatro cantos do mundo. Os destaques da sua programação foram matéria de programas de rádio e de artigos na imprensa.
Estas actividades deram força a um projeto que, para os devidos efeitos, gerou um formato e uma marca que passou a ser igualmente uma referência internacional da curta-metragem. No panorama audiovisual dos programas de curta-metragem a nível mundial, o Onda Curta continua a ocupar a segunda posição em matéria de longevidade. Só o Libre Court da France 3 o supera no quadro dos veteranos.
Da programação propriamente dita, muitos são os momentos que posso destacar. Para citar apenas alguns, os ciclos dedicados a Norman McLaren, Louis e Auguste Lumière, Tex Avery, Winsor McKay, Charlie Chaplin, Buster Keaton, Alain Resnais, Agnès Varda e os realizadores da Nouvelle Vague, Jean-Luc Godard e François Truffaut. De repente, dou conta de que estou a citar alguns dos mais conhecidos, mas não me posso esquecer obviamente da minha preocupação que foi sempre a de mostrar, por vezes numa mesma sessão, o clássico e a vanguarda. Por outro lado, reservei sempre um lugar especial para as melhores curtas nacionais. No campo da ficção, animação, documentário e experimental, fui certamente responsável por algumas delas chegarem a um público mais vasto, milhares e milhares de espectadores que, apesar da sua cinefilia, nem sempre frequentam as manifestações cinematográficas que se multiplicam por esse mundo fora.
Com o passar do tempo, o Onda Curta foi-se tornando aos meus olhos um espaço de resistência num canal onde programas como Cineclube, Cinco Noites, Cinco Filmes e O Filme da Minha Vida foram sendo reduzidos, progressivamente, a saudosas recordações distantes. Por exemplo, no momento em que ficamos (temporariamente ou não) sem Onda Curta, a RTP2 não contempla um único espaço de cinema. Como interpreta esta evolução ou involução do cinema no segundo canal?
Fala de programas ou espaços de programação que me são próximos, na medida em que participei ou na sua génese, o Cinco Noites, Cinco Filmes e O Filme da Minha Vida, ou na sua continuidade, o Cineclube. Na verdade, fui programador de cinema da RTP, sobretudo do segundo canal, entre 1989 e 1998. Para além disso, após a saída do Fernando Lopes, fui responsável pelas coproduções cinematográficas que acumulava com a globalidade da programação de ficção da RTP. Não gosto de viver no passado, mas não me custa afirmar que no referido período foram criadas condições muito favoráveis, que se mantiveram por alguns anos, para quem quisesse defender uma programação de cinema planificada e estruturada, facto que sem dúvida permitiu alimentar o desejo de ver e descobrir bom cinema a mais do que uma geração de cinéfilos. Essas condições já não existem? Porque já não existem especialistas de cinema na RTP? Não há interesse pelo cinema enquanto matéria de programação nos canais ditos generalistas? São perguntas que fazemos e são legítimas face ao que vemos diariamente, na maior parte dos casos, a normalização da oferta concentrada na filosofia de produção orientada para o consumo imediato, onde os programas de fluxo e os de stock se confundem e só vingam se gerarem audiências, leia-se, o lucro. Neste contexto, como se pode adivinhar, não há lugar para qualquer projecto alternativo habitualmente mais difícil de gerar receitas, seja ele um programa de cinema ou de outra componente cultural qualquer. De facto, o lucro faz parte dos pressupostos de funcionamento da esmagadora maioria dos projetos audiovisuais, sobretudo, dos canais privados. Não obstante, esse não pode ser o único pressuposto nem muito menos o modelo económico predominante no serviço público.
Está agora a ser debatido na Assembleia da República um novo Contrato de Concessão da RTP. Em que medida podemos esperar dele mudanças significativas na programação cultural da RTP2?
Sinceramente, gostava de acreditar que o futuro pudesse ser radioso para a programação cultural da RTP2 e de outros canais similares, e não apenas em Portugal, pela simples intervenção político-administrativa deste ou daquele governo. Mas no nosso país não me parece que isso seja possível sem uma profunda reestruturação da empresa responsável pela manutenção do serviço público, nem essa reestruturação passa necessariamente pela mera renovação dos quadros ou das estruturas a que eles dão corpo. Provavelmente, a solução passa por encontrar um modelo de financiamento que permita alimentar uma dialéctica entre o modelo clássico de programação e as novas plataformas de comunicação, paralelamente ao desenvolvimento sustentado da produção audiovisual independente. Mas, primeiro, precisamos de ver o Estado assumir as suas responsabilidades criando as condições gerais que permitam, entre outras, uma actividade cultural sem interrupções, gerida com determinação e rigor, uma actividade na qual se podem e devem inserir as diversas frentes da produção e difusão do cinema e do audiovisual.