Nijima queria matar toda a gente sozinho. Afinal de contas a vingança da morte da filha de oito anos não lhe tinha trazido paz e morrer dava-lhe igual ao litro. Iwamatu, o amigo de escola que o trouxe para os negócios dos yakuza, diz-lhe que não. Numa estrada inclinada a tal “família” (de gangsters, entenda-se) pára de limusina e sai para a rua. Quando Nijima entra no plano, estrada acima, de arma na mão para os matar, o amigo abalroa-o, literalmente, antes que os mauzões (ou bonzões, nem se sabe) se apercebam. Impede-o de matar essa gente toda (é um acto de amor?) e diz-lhe que tem um plano. Elipse e vemos os homens todos mortos no chão junto ao carro e Kiyoshi Kurosawa, que nada é ao Akira do mesmo nome, filia-se antes com esse salto narrativo no cinema do compatriota Takeshi Kitano e nos seus filmes iniciais de yakuzas durões com ainda mais duro sentido de humor.
E a seguir vem qualquer coisa de tarantinesco. Eu dizia que estavam todos mortos mas estava a mentir. O chefe ainda por lá andava e vem a fugir pela estrada, esbaforido. Lentamente, Nijima e os outros três (eles também são uma família recém-formada) encurralam-no. Ajoelhado, entre os quatro, a vítima espera a morte. Um deles aponta e click click click, três vezes a arma não dispara. Quatro, cinco, seis clicks e a pistola afinal está vazia. “Experimenta a minha”, diz um deles. Vazia também. Nijima dispara um tiro para o ar. “A minha funciona”, diz, entregando a pistola ao primeiro. Será desta que morre?, pensa o espectador. Click. Raios esta também já não tem balas. Sem aguentar mais, o morto que nunca mais morre levanta-se e tenta fugir. É Iwamatu quem lhe acerta com um tiro de costas. Cai e os quatro aproximam-se dele e, de repente, todas as armas funcionam: chuva de balas no meio da estrada, do campo, e final do gag mais negro de Kumo no hitomi (O Olhar da Aranha, 1998).
Mas há mais: o filme tem yakuzas de patins, perseguições ao jeito de Benny Hill (de Nijima ao big boss, fanático por pedras e artefactos arqueológicos) no meio das montanhas e uma sequência genial, ao nível do melhor Tati, com o protagonista em modo gangster burocrático a carimbar papelada. Este tom mordaz não é certamente a forma mais evidente de falar de um cineasta que está prestes a chegar aos olhos e ouvidos da comunidade cinéfila portuguesa através de um ciclo que a Cinemateca Portuguesa resolveu nomear “Kiyoshi Kurosawa, O Padrinho do Terror”. É verdade que há terror sim senhora, mesmo vários terrores no seu cinema (inclusive uma certa tecnofobia) mas já lá iremos. A razão, dizia, de enaltecer o ambiente absurdo de Kumo no hitomi [segunda e melhor parte do díptico do qual ainda faz parte, Hebi no michi (O Caminho da Serpente, 1998)] é porque parece ser aqui que está o prato forte de Kiyoshi Kurosawa.
Da catrefada de filmes que já tem (26 fora curtas e filmes para a televisão) é pelo menos didáctico pensar o que fazer com a amostra de filmes a serem mostrados (cinco) no sentido de descrever o que é, como é, o seu cinema. Há uma certa lógica em agrupá-los aos pares. O primeiro par é mais ou menos óbvio e nasceu de um desafio: escrever e filmar dois filmes em duas semanas, com os mesmos actores e com a mesma premissa: um pai que se quer vingar do assassino da filha. Se em Kumo esse assunto, essa vingança, é consumada precocemente é porque a personagem de Shô Aikawa (o tal Nijima, mesmo actor do primeiro filme) lida com um recomeço de vida, um recomeço ligado à produção de morte, assim como o próprio filme é esse desembaraço do thriller denso que foi Hebi no michi para encontrar a leveza no que outrora foi sóbrio. Mas o que é que outrora foi sóbrio? Foi esse “caminho da serpente”, ritual serpenteante, que mostrava a obsessão pela vingança, com as imagens do home video da criança repetidas ao ponto da performance, em que o pai e o amigo professor, os vingadores, parecem ter saído de Reservoir Dogs (Cães Danados, 1992) mas sem uma pinga de humor. Como se avançassem em circuito, de tortura em tortura, tudo ante a câmara distante, observadora e expectante de Kiyoshi. É um filme difícil de gostar, feito em contra ritmo, um pouco como acontece com o seu terror.
No segundo par é preciso fazer batota e ir buscar o único filme que conheceu distribuição comercial até hoje por aqui mas que não passa no ciclo: Tokyo sonata (Sonata de Tóquio, 2008) é o filme mais arrumadinho de todos. Drama familiar sobre a desagregação de uma família – o pai perde o emprego mas não quer dar parte de fraco e finge ir todos os dias trabalhar, a mãe sente a distância do marido, o filho mais velho alista-se no exército norte-americano e o mais novo quer aprender piano mas não o deixam – que, embora trabalhando no mesmo registo que Ningen gokaku (Licença para Viver, 1998), e por isso com ele aparelha tematicamente, opera um movimento inverso. Se em Sonata a família começa unida e experimenta a desunião, para ante a peça musical do petiz, no final, voltar a reunir-se, em Ningen, a reunião dos membros da família é temporária uma vez que o despertar do jovem Yoshi, de 24 anos, após dez anos de coma, instalou na família o princípio da dispersão. No melhor (e mais desarrumado) dos filmes a ser apresentado, o Yoshi de Kiyoshi vive sob o signo do sonho e é à separação que tudo volta. “Eu existi?”, pergunta Yoshi ao amigo Fujimori que o acolheu (Koji Yakusho, o actor fetiche de Kurosawa) depois de levar com um frigorífico em cima (eu disse que era surreal o filme). Não há sonho, é tudo real, responde-lhe ele. Yoshi sorri, contente, mas de nada lhe vale pois morre mesmo, voltando tudo ao estado natural de separação. Aquela família não foi para estar junta, ponto final. A de 1998 digo, pois dez anos mais tarde a maturidade obriga a pensar em finais felizes. De um filme ao outro a atmosfera surrealizante das quintas de pesca no meio do nada, dos bares que servem copos de leite e do cavalo (melhor amigo, o outro melhor amigo, de Yoshi) dão lugar ao comentário social sobre a natureza do trabalho e suas oportunidades, na capital do Japão, sem pelo meio descurar esse efeitos na arquitectura emocional das famílias. É neste registo, em que não é padrinho de coisa nenhuma, em que é menor o trabalho sobre a atmosfera, que Kiyoshi Kurosawa mostra mais fibra de cineasta para além da aura de realizador de culto.
Essa aura começou a desenhar-se sobretudo com Kuya (A Cura, 1997) que, sendo uma espécie de filme noir no qual um polícia investiga uma série de assassinatos em que os suspeitos não têm motivo, tem também uma qualidade de imersão, lenta, low key, a palavra é mesmo hipnótica, que não se sabe muito bem de onde vem, ou antes para onde vai. É certo que o início dos anos 90 foram para Kiyoshi anos de formação nos Estados Unidos e por isso não espanta que esta Cura (cura para quê, em relação a quê?) tenha momentos em que faça lembrar a cumplicidade e aquele misticismo atractivo entre Jodie Foster e Anthony Hopkins de The Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991), entre presa e predador. Mas aqui esse hipnotismo que o filme lança sobre as pobres almas que o veem (fazendo da hipnose o fundo e a forma) não ganha explicação compensatória. Essa atmosfera – volto à aura de Kurosawa – advém deste construir o suspense ao contrário, ou seja, tudo permanece na rica vidinha de todos os dias; as cenas de conversa, seja entre culpados ou inocentes, sucedem-se numa calmaria a lembrar o início da Primavera. E depois se há gente que se vai mandar de prédios altos então que se mandem, sem grandes alaridos. Isto é, a mise-en-scène não prepara, desprepara, amolece, amorna (anestesia o cérebro para depois o comer regadinho a Chianti; acho que já chega de imagens). E depois quando caem as facas, já ninguém sabe bem ao que anda. No plano final, por exemplo, há uma faca, mas quanto boa gente irá reparar nela?
Quatro anos depois Kairo (Pulsação, 2001) faz parte deste terceiro par com que venho agrupando as suas obras, neste caso aquelas que lhe dão o título de padrinho no ciclo. É um filme de terror a que lhe subjaz uma premissa meio tecnofóbica que hoje ou nos dá vontade de rir às gargalhadas ou nos põe a pensar na seriedade da sua simbologia: e se os fantasmas dos mortos viessem ter connosco por esse portal chamado… internet? Como em Kuya há um lado hipnótico em tudo isto, “people don’t commit anymore”, diz uma personagem em modo comentário social. Eu sou dos que não consigo deixar de rir (e não passou tanto tempo assim, treze aninhos?) quando ouço os sonzinhos de ligação dos modems antigos que pelo menos uma das personagens ouve no seu quarto e a ideia de que há um site chamado “the forbidden room” ao qual ninguém pode aceder; têm correspondência no mundo real e mais de uma vez as pessoas calafetam-nos com tape vermelha. Mas vai na volta sou eu que já sou fantasma também e são eles que estão a rir por último. Seja como for, aceleração tecnológica a mais ou a menos, ghost ou god in the internet, o certo é que também aqui da historiazinha se evoluiu para uma dimensão maior, aqui pós-apocalítica, onde as pessoas se evaporam do reino dos vivos.
Pego, para terminar, que isto já vai longo, nesta ideia: em quase todos os filmes de Kiyoshi Kurosawa há cenas passadas em espaços abertos, mais ou menos desolados (o warehouse de Hebi no michi, o manicómio em Kuya, as sequências de fuga de Kairo, ou até mesmo, de certa forma a quinta de Yoshi em Ningen gokaku). Se podemos dizer que esse é um traço da escrita autoral do japonês – assim como o são o uso das imagens vídeo como presença fantasmática, a tal câmara distante e observadora a captar os silêncios, o vento nas cortinas, etc. -, neste caso, esses espaços são índices (acho eu) do que se passa no seu cinema. Nesse “espaço aberto” do género policial, do drama, do terror, Kiyoshi quer filmar o fechado, no sentido de algo que começa na leveza e simplicidade e desemboca no abstracto, no complexo. Esse movimento explica não apenas a sua aura de culto: o culto é isso, é algo que parece feito com tijolos de massa bruta e elabora um produto final todo matizado de diamante e ouro. E finalmente, e talvez isto explique porque Kiyoshi Kurosawa seja considerado um autor na sombra, essa passagem à complexidade, por virtude do jogo sobre o ambiente e o esbatimento das relações lógicas, produz filmes difíceis de digerir, mas sobretudo de etiquetar. E, sabe-se, a História vive de histórias com princípio, meio e fim, como esta, a deste texto, também não é.