Tous les cinéastes cherchent le Cinéma et le découvrent partiellement. Vigo est le Cinéma incarné dans un homme.
Henri Langlois, 1956.
L’Atalante (O Atalante, 1934) é um filme dos primórdios do cinema, que supera o teste do tempo, de uma sensibilidade e beleza imensa poucas vezes igualada desde então. O primeiro e único filme de longa duração de Jean Vigo, que morreria pouco depois da conclusão de L’Atalante com apenas vinte e nove anos, é um filme sobre personagens abandonadas pela sociedade, tendo sido esquecido durante décadas em salas de arquivos. Ensombrado pela história maldita da vida e morte de Vigo, o filme que sofreu várias mutações até à sua eventual restauração é uma parte essencial do mito formado em torno da figura do realizador e uma prova de que importa preservar o seu legado na memória corrente.
O filme começa com um casamento, ou melhor, com a procissão dos recém-casados desde a igreja até ao seu novo destino, seguida com espanto pelos habitantes da aldeia. Esta espécie de preâmbulo a pé até um batelão onde o filme ameaça deixar-se ficar, apresentado assim sem qualquer contexto este romance, serve para empurrar as duas personagens principais para o centro do filme, e anunciar as intenções visuais do mesmo, situadas entre um lirismo impressionista com toques surreais e um realismo documental. São desde logo inesquecíveis os planos dos habitantes nas margens a olhar para o barco, à medida que este avança, e as paisagens que vão surgindo no princípio desta viagem. A bordo desta barcaça, que será ao mesmo tempo local de trabalho e de lua-de-mel improvisada, convivem o casal (Jean e Juliette), um velho ajudante e um rapaz mais novo, numa espécie de família disfuncional.
Se no início do filme tudo parece correr bem entre o jovem casal, com Vigo a pontuar o romance nascente com jogos de sedução e troca de afectos, aos poucos a monotonia da viagem e as duras condições de vida a bordo começam a arrefecer a relação entre os dois – numa das cenas iniciais vemos Juliette (interpretada por Dita Parlo) na proa do barco a olhar com melancolia para o futuro, e Jean em dificuldades para chegar perto dela. Desiludida com o rumo da sua vida, Juliette encontra no velho ajudante do barco, Jules, um marinheiro marcado pelos anos acumulados no mar, impertinente e de modos rudes, as histórias de aventura e o exotismo de terras longínquas que procura. Ainda assim, aquando de uma prometida visita a Paris, e depois de uma falhada saída romântica com Jean, Juliette acaba por sucumbir à curiosidade e abandona o barco, marcando o início do terceiro acto do filme e a necessidade de resolver o desencontro entre o par.
A história de L’Atalante não é mais do que uma simples variação da fórmula amor encontrado / amor perdido, uma divagação sobre desamores e reencontros. O argumento foi, na verdade, imposto a Vigo pelo seu produtor, depois de o seu filme anterior Zéro de conduite (Zero em Comportamento, 1933) não só ter falhado junto da crítica e público, mas ter sido banido devido ao seu conteúdo radical. Vigo viu-se na necessidade de apresentar uma obra mais acessível para continuar a ser financiado, mas aproveitou a oportunidade para expandir a sua visão autoral. Como refere Michael Temple no seu livro sobre o realizador, se a linha narrativa do argumento que prende o filme será a prosa, Vigo encontra espaço nas entrelinhas para escapar da estrutura mais convencional e dotar o filme com momentos poéticos, que o libertam para uma maior sensibilidade. Vários exemplos sublinham esta intenção de Vigo: desde os planos em que as personagens são envoltas pelo nevoeiro do rio no barco, assemelhando-se lentamente a figuras fantasmagóricas; à sequência de imagens subaquáticas quando Jean mergulha na água à procura de uma visão de Juliette; ou uma sequência de montagem alternada entre os dois, já separados e deitados em camas distantes mas a pensar um no outro, numa alucinação febril.
Rejeitando os moralismos fáceis da história que lhe foi inicialmente proposta, Vigo escolhe mostrar-nos empatia pelas personagens, e esse olhar humanista é uma das virtudes que o filme nos ensina. Com recurso a elementos próximos do documentário, Vigo pretende também aproximar o filme dos seus ideais políticos, e é neste encontro entre o poético e o documental que o filme se distingue. As condições frugais a bordo do barco e a luta diária para sobreviver são registadas por Vigo como parte integral da vida destas pessoas. Mas o filme mostra comentário social também na realidade fora do barco: numa cena em que Juliette é roubada, o seu assaltante acaba agredido violentamente por uma multidão, que por sua vez acaba agredida pela polícia; noutra sequência, Juliette procura emprego, mas só encontra filas desoladoras de homens à procura de trabalho. Esta preocupação em apresentar a realidade como algo que pede uma mudança é algo que Vigo desenvolveu nos seus primeiros filmes, ensaios para esta longa.
O seu primeiro filme, um documentário sob a forma de guia turístico irónico, À Propos de Nice (1930), revela uma câmara deambulante e vadia. Através de imagens captadas de diversas formas, Vigo utiliza três componentes para perverter uma imagem idílica da cidade balnear com um olhar irrequieto: a câmara, a perspectiva e a montagem. Com a câmara em constante movimento, liberta-se de uma abordagem clássica; com a perspectiva (ângulo e campo de visão), procura novas imagens a partir de elementos conhecidos; e com a montagem, através de um jogo de associação visual entre campo e contra-campo, cola duas imagens distintas que ficam assim ligadas, como se uma comentasse a outra: um desfile militar é seguido de imagens de um cemitério, imagens de mulheres a passear em vestidos excêntricos são seguidos de imagens de uma avestruz, e imagens aéreas de Nice são acompanhadas pelo mar a varrer a areia da praia. Taris (1931) é o segundo filme de Vigo, um documentário de curta duração que decorre por completo numa piscina, com a câmara a seguir os movimentos do nadador. Enquanto este fala sobre as diferentes técnicas que utiliza, Vigo demonstra não só já um domínio técnico invulgar, mas uma curiosidade em descobrir imagens com valor estético próprio.
A atitude desafiante será aumentada com o seu filme seguinte, Zéro de conduite, uma ficção sobre a vida num colégio privado, onde o autoritarismo exercido sobre os alunos irá dar lugar a uma rebelião que tomará a escola de assalto. Pontuado por momentos surreais, próximos de uma comédia do absurdo, e de um espírito rebelde, é uma história autobiográfica, inspirada nas experiências da juventude de Vigo. Depois da morte traumática do seu pai, um activista anárquico, encontrado enforcado na cela onde estava detido, Vigo passou a juventude transferido de colégio em colégio sob um nome falso. Esta instabilidade aliada a crónicos problemas de saúde e aos insucessos anteriores, fazem com que Vigo chegue a L’Atalante com pouco tempo e com a urgência de uma última oportunidade. As filmagens acabam por decorrer nos meses de Inverno de um frio proibitivo para o seu estado tuberculoso, provocando uma deterioração da sua saúde que seria fatal. L’Atalante é recebido com indiferença, e depois de ser editado pelo estúdio e estrear sob um título diferente, é retirado de circulação após duas semanas de exibição, e acabará esquecido – pelo menos até à sua recuperação décadas mais tarde, quando Vigo será descoberto e louvado por uma nova geração de cinéfilos, liderados por Henri Langlois, eminente director da Cinemateca Francesa.
A frase de Langlois é uma hipérbole, mas o exagero é compreensível dada a conturbada história pessoal de Vigo e da sua obra: um filme inesperado e ignorado (À propos de Nice), outro proibido (Zéro de conduite), e outro mutilado e abandonado (L’Atalante). Este último não é um filme perfeito, mas é nas suas imperfeições, inseguranças e ingenuidade que se afirma em parte a fé no cinema como meio de empatia, de oferecer novas perspectivas. Vigo pode não ser a encarnação do cinema, mas foi através do cinema, da dedicação de realizador a uma visão, que conseguiu deixar a sua forma de ver o mundo.
L’Atalante será exibido dia 14 pelo Aonorte Cineclube Viana, às 21h45 no Auditório dos Estaleiros de Viana do Castelo.