Hoje (domingo), acordei com a mais triste das notícias: morreu Alain Resnais.
O sentimento de tristeza genuína não se deve apenas a ter testemunhado o desaparecimento de um artista imenso – deve-se ao facto de saber que, nos próximos anos, sejam eles quantos forem, os meus olhos irão olhar para o mundo sabendo que esse não será refrescado, rejubilado, celebrado, encenado, pelo maravilhoso pensamento de um cineasta genial, humilde e profundamente generoso.
Generoso porque, tal como os mais belos cineastas (e não aqueles que apelidamos de “maiores”, ainda que esse fosse também o caso), Resnais nunca construiu o seu cinema sozinho ou à imagem dele próprio – fê-lo sempre por uma colaboração essencial com os outros. “Viens voir les comédiens, voir les musiciens, voir les magiciens qui arrivent…” cantava soberbamente Aznavour no trailer de Vous n’avez encore rien vu (2012), filme sublime sobre como, na morte de um homem, tal como numa vida virada para o amor, a solidão não tem lugar e o reencontro é sempre possível. E se os filmes de Resnais eram sobre si, no seu caso, essas palavras devem ser lidas do seguinte modo: os seus filmes eram sobre nós, sobre os outros – seres que nada são sem o próximo que lhes dá o amor e a paixão que procuram.
Era comovente ver a um ritmo que sentíamos ser anual nos últimos anos (talvez porque, mais próximo da morte, a vida deveria ser celebrada, daí a sua “ligeireza” dos anos recentes – abençoada seja) como a sua câmara se virava, de facto, para os intérpretes que davam corpo ao seu universo. E Resnais, tal como em Aimer, boire, chanter (a sua última obra, ainda por estrear, que resume num título todo o movimento essencial da vida), parecia ser o homem invisível que determinava todos os seus passos, os seus amores e desamores. Na verdade, era o gesto do mais belo dos cineastas – retirar-se de cena e deixar que a vida acontecesse nos seus filmes. E o palco onde ela se encenava – seja ele o teatro, o cinema, as imensas páginas de movimento e letras que se publicam diariamente pelo mundo fora para o deleite da nossa imaginação – torna-se o melhor lugar para nos homenagearmos e amarmos uns aos outros.
Éramos sempre bem-vindos no cinema de Resnais porque ele convidava todos os tempos e formas para dentro dele. Passado, presente e futuro, tempos que surgiam em igual forma e respeito ao longo de um filme, pois todos se determinam em função uns dos outros – tal como nós. As lágrimas que um actor chorava no presente de uma cena podiam vir da tristeza de um outro dia vivido no passado. E seria, porventura, a esperança desse futuro e um outro actor a tomar um novo lugar na sua vida que iria olhar para elas e dar lugar à celebração, ainda na tristeza, ou aos corajosos gestos de uma paixão que espera por um novo amor eterno. Aimer, boire, chanter.
Por isso, a notícia mais triste encerra em si, também, a alegria e beleza do movimento imparável – aquele que nos dá um cineasta e que guardamos para sempre no nosso olhar. Resnais dizia que era impossível inserir o passado num filme através do flashback (odioso artifício). Ele que não hesitava, do mesmo modo, a recorrer a cenários como se de uma peça de teatro se tratasse. Mas Resnais sabia que, para ser verdadeiro, era preciso ser fiel aos sonhos e àquilo que o nosso olhar guardava – aquilo que os actores lhe davam quando olhavam uns para os outros e para a sua câmara. E que, do outro lado, está um espectador, sentado, a viver por eles na sua imobilidade.
Assim, tal como em Smoking/No Smoking (Fumar/Não Fumar, 1993), dois filmes lançados ao mesmo tempo, também digo: Alain Resnais morreu/Alain Resnais não morreu. A vida e a morte – em nenhum outro lugar como no cinema vimos isso – nascem e desaparecem ao mesmo tempo. E regressam sempre, no dia em que desaparecermos, no olhar dos outros – aqueles que nos viram, que nos amaram, que viveram connosco. Não são precisos truques – basta viver e olhar para essa grande encenação que eleva a vida à escala dos nossos sentimentos mais secretos, deixando que o cinema lhes dê imagens e palavras que não sabíamos dizer. E a partir de agora, depois da despedida, guardamos Resnais connosco e sentimo-lo na curiosidade eterna que ele deu ao nosso olhar. Como no início de Les herbes folles (As Ervas Daninhas, 2009), em que um actor nos diz ao ouvido: Parfois le courant, le banal, peut conduire à… À quoi? On va voir ça.