Quando chamámos de “movimento perpétuo” a este conjunto de crónicas, pensávamos, naturalmente, num movimento verdadeiro, ainda que invisível aos olhos – aquilo que existe entre as coisas, entre as pessoas, e entre os olhares de quem vive numa tela de cinema e reflecte, para nós, a verdade das nossas vidas por palavras e imagens que pertencem à ordem do sonho e dos seus desejos.
E é por reconhecer a sua parte de artifício e de fantasia que esse movimento permanece verdadeiro. Do mesmo modo, os cineastas que o reconhecem serão, por natureza, humildes na sua arte, por saberem que brincam com uma pequena mentira, e generosos nos seus gestos, por crerem que se encontra a verdade dentro do que é indizível.
Talvez como um pouco em tudo na vida, existem também os escrocs no cinema – aqueles que julgam ser suficiente atirar-se ao artifício para espantar o olhar e assim vender, ao espectador, uma ficção totalmente desligada dessa verdade. Ou seja, desligada de si mesmos, do local onde a filmam, do seu tempo, das pessoas com quem vivem, ou apenas dos próprios sonhos que dizem ter. O cinema tem essa vantagem – a lente nunca mente, pois é ela que nos faz ver o invisível e estabelece a ponte para as nossas emoções. E porque os filmes que vemos também são sempre sobre nós, sentimos um filme a fazer-se passar por um corpo cheio de qualidades da mesma forma que alguém nos tenta vender uma coisa que não é.
O Sr. David O. Russell provavelmente terá percebido isso – que para se sentar na primeira fila das cerimónias de prémios e marcar o seu território na indústria onde trabalha, bastava fingir que se fazia um filme. Golpada Americana (American Hustle, 2013) não se trata sequer de um mau filme (com o qual nada temos contra – arriscar e falhar faz parte do gesto de criação). Apenas não suportamos o filme por ser mentiroso – faz-se passar por algo que não é (o Sr. Scorsese tem razões suficientes para fazer um par de telefonemas a amigos seus da região nova-iorquina para ir bater à porta do seu colega de profissão) e, pelo caminho, não sabe fazer raccords de olhares. Resultado: ninguém olha para ninguém, toda a gente finge que se fala, e, mais uma vez, o departamento de caracterização acaba por realizar um filme em Hollywood que ninguém consegue descrever (excepto um par de actrizes que nos salvam alguns momentos de interesse – e não chegam acordes de Led Zeppelin e alguns decotes para se fazer passar algo que, em primeiro, deve vir do comportamento dos corpos e das palavras que eles deitam).
Talvez a ambição do Sr. Russell não fosse mais do que isso – sentar-se nesse lugar cativo das cerimónias. Intenção perdoada, então. Será mesmo La grande bellezza (A Grande Beleza, 2013) que iremos demorar mais tempo a perdoar. O Sr. Paolo Sorrentino, louvado como o novo salvador de um enterrado cinema italiano, não hesita em explicar, em várias entrevistas, porque é que acha que “as pessoas” olham de novo para o cinema do seu país (mas esquece-se sempre de referir quem mais faz por isso e com o melhor respeito por esse mesmo cinema – Matteo Garrone). O Sr. Sorrentino aproveita-se também das ignorantes referências, nas mesmas entrevistas, a Fellini e La dolce vita (A Doce Vida, 1960). Esquece-se o Sr. Sorrentino que Fellini nunca se colocou acima de qualquer sociedade nem de qualquer decadência, como faz ele próprio, nem em nenhum momento, em três horas de filme, se ouvem as palavras “desilusão” e “Roma” na mesma frase. Fellini olhava para essa decadência, vivia-a, sabia que morreria por ela e celebrava-a. Era essa a vida e toda ela merecia uma encenação à altura. O Sr. Sorrentino, por seu lado, recria algumas figuras da suposta elite jornalística e literária (alguém já viu jornalistas e escritores assim, mesmo nos seus sonhos?), apresenta uma Roma patrocinada por cocktails Martini e pretende legimitar tudo, aos olhos do espectador, com “é tudo um truque”. O Sr. Sorrentino, achamos nós, coloca-se em bicos dos pés e aproveita-se da fama dos outros para nos mostrar, afinal, que não faz a mínima ideia do que é a vida. Não duvidamos, no entanto, que ele próprio tenha uma.
Poderíamos também nós colocar-nos em bicos dos pés e lançarmos uma recomendação aos dois realizadores. Mas não temos essa pretensão e reservamo-nos, portanto, aos nossos próprios olhos que se sentiram enganados. Les hautes solitudes (1974) de Philippe Garrel é um filme sobre tudo isso: a vida, a decadência, uma actriz (Jean Seberg), e tudo o que ela foi, quis ser e ainda era. Não existem palavras, não existe qualquer som, apenas uma câmara perante um rosto. Todo ele, sem qualquer aparato, sem qualquer intenção de se fazer passar por outra coisa, para além daquilo que é, consegue ser mais do que qualquer torto e académico movimento de câmara dos seus “grandes tomos”. Mesmo que não se aprecie o filme de Garrell, nunca mais o esqueceremos – porque ele é verdadeiro e nós também o somos.