A verdade é que não tinha nada para fazer, ou melhor, tinha mas não me apetecia. Por isso, entre encher chouriço com conversa da treta e ir à Cinemateca ver o que lá passava, decidi-me pelas duas coisas: primeiro o encher do chouriço e depois a faca e o alguidar de Luis Buñuel. O filme que a sala Luís de Pina acolhia nesse final de tarde era La hija del engaño (A Filha do Engano, 1951). Depois de lida a folha de sala, pela mão de João Bénard da Costa, deparei-me com uma curiosidade que muito me surpreendeu: La hija, “tal como várias outras produções desses anos mexicanos de Buñuel, só nos finais da década de 60 foi distribuído na Europa e a Portugal só chegou (sabe-se lá por que razões e com que critérios) em Junho de 1974 [no Cinema Estúdio], para uma discreta carreira, quando toda a gente, se bem se lembram, tinha mais em que pensar. Certamente que, neste caso, a sua passagem post-25 de Abril nada teve que ver com razões de censura, dado que o filme obviamente teria tido o nihil obstat em qualquer altura.”
Se é verdade que o fervor revolucionário do PREC não deve ter sido o ambiente mais propício para a calmaria de uma sala escura, ainda para mais num período da nossa história em que a vida se fazia na rua (e pela rua), o certo é que o fim da censura levou muitos portugueses ao cinema – claro está não para ver La hija del engaño (filme “alimentício” com certeza mas de elegância gourmet) – em especial aos filmes proibidos durante o regime, de onde se destacam as apertadas sessões no cinema Império (veja-se a fotografia acima) de Bronenosets Potemkin (O Couraçado de Potemkin, 1925) de Sergei Eisenstein – cuja sessão incluía também Jaime (1974) de António Reis e Margarida Cordeiro.
As sessões a abarrotar resultaram por um lado de um desejo genuíno de finalmente ver uma das grandes obras do cinema e por outro da precisão da sua estreia. António da Cunha Telles distribuiu o filme, cujos direitos possuía à custa de um negócio sobre os direitos de exibição do seu O Cerco (1970) na URSS, estreando-o exactamente um dia depois do 1.º de Maio que levou toda a gente às ruas. Em certo sentido não faria sentido estreá-lo noutra altura. Esta consciência do momento exacto da estreia de um filme, a agudeza com que se avalia os interesses do público e a forma como se resolvem os problemas burocráticos e logísticos são as variáveis pelas quais temos que reger o sucesso da distribuição de um filme e, nesse caso da estreia de Bronenosets Potemkin, todas elas agiram em consonância no sentido do sucesso de público (e de bilheteira, suponho).
Durante pouco mais de dois anos, até Setembro de 1976, estrearam cerca de 1000 filmes em Portugal, onde se incluíram vários títulos proibidos como Bonjour Tristesse (Bom Dia, Tristeza, 1958) de Otto Preminger, Satyricon (1969) de Fellini, Tystnaden (O Silêncio, 1963) e Riten (O Ritual, 1969) de Bergman – como se vê na fotografia acima na sala Estúdio do cinema Império – Jules et Jim (Jules e Jim, 1962) de Truffaut, o mítico Emmanuelle (1974) de Just Jaeckin que abriu as portas para todo o(s) cinema(s) pornográfico(s), Teorema (1968) de Pasolini ou ainda outro dos filmes revolucionários de Eisenstein, Oktyabr (Outubro, 1928), entre tantos mais.
Serve isto para dar a entender quão frenéticos devem ter sido aqueles tempos (para a exibição de cinema). Procurava-se satisfazer uma necessidade de descobrir por parte dos espectadores e por isso enchiam-se as salas com tudo numa fúria de ver e dar a ver – “Após quase meio século da mistificação do sexo e de total ausência de educação sexual, é compreensível a curiosidade que caracterizou a procura de publicações, exibições fílmicas e, em geral, de instrumentos de expressão e comunicação versando temas eróticos. Durante séculos, foram as barreiras e os tabus erguidos em torno do sexo, e dos seus problemas, responsáveis por frustrações, taras e infelicidades sem conta. Nessa medida não terá deixado de desempenhar um papel socialmente terapêutico e profiláctico esta espécie de tratamento de choque”. Tratamento de choque é pois a expressão perfeita para descrever a relação do cinema com os portugueses nesse período efervescente da nossa história.
A questão que me imponho perguntar é por que razão (no momento presente em que não há – virtualmente – impedimento algum a ver qualquer filme e em que as carteiras dos espectadores estão cada vez mais magras) o número de estreias nos últimos dois anos e meio – cerca de 800 – está tão perto do mesmo número de 1976 onde as condições assim o justificavam? Porque se estreiam tantos filmes, ainda para mais quando se percebe pelos números que a maioria dessas estreias fica muito aquém do número de espectadores desejável? Porque é o tempo de exibição por vezes tão curto? Porque demoram tanto tempo a estrear certos filmes, e quando o fazem – se o fazem -, os possíveis espectadores já os viram de forma ilegal?
A resposta prende-se com o descolamento entre grande parte da distribuição e aquilo que é a realidade do espectador português – e saliente-se o português, no sentido em que muitas das estreias são impostas internacionalmente pelas majors estrangeiras independentemente de como o calendário está preenchido, daí as semanas de 12 ou mais estreias. Não é pois surpreendente o noticiado encerramento da CTW – Columbia TriStar Warner (distribuidora que representava nacionalmente os estúdios da Warner Bros. e Sony Pictures), que se limitava a distribuir os filmes destes estúdios ao ritmo da batida de produção -, ao que não terão ajudado as próprias debilidades da Sony a nível internacional.
No entanto há uns casos presentes que revelam uma argúcia na leitura do mercado de distribuição, que mostram que nem tudo é esquizofrénico. O caso do Ciclo – Ingmar Bergman que se mostrou (e se vai mostrando) um sucesso ao perceber que o esquema das reposições resulta melhor num gesto alargado de programação ao invés do que havia sucedido até agora (a estreia em sala no formato tradicional das três/quatro sessões diárias ao longo dos sete dias da semana). Desta forma o número de espectadores por dia de exibição aumentou muito significativamente alcançando-se em apenas dois dias mais público que outros filmes numa semana inteira de várias projecções diárias. “O que se tem passado no cinema Nimas, em Lisboa, desde o início de Janeiro, são como cenas de um sonho“, certo, mas desses onde o onirismo é todo construído e onde as surpresas não são mais que precisão de leitura do público, acerto no calendário e inteligência na escolha dos espaços e no esquema de exibição.
Agradeço a ajuda inconsciente de Paulo Cunha, José Filipe Costa e Maria do Carmo Piçarra que me deram a ideia para esta crónica numa conversa de Facebook.