Na sequência da passagem da curta-metragem de animação que esteve na berra por causa dos Óscares, Feral (2012), e do fim do programa Onda Curta na RTP2 que não esteve na berra em lado nenhum sem ser no À pala de Walsh, faço desta crónica Civic TV uma amarga dedicatória a todos os que têm destruído qualquer possibilidade de uma televisão de serviço público, a cobro de uma defesa de modo algum desinteressada de uma realidade empresarial que nos últimos anos apenas se destacou pela forma exemplar como rasgou sucessivas vezes o seu compromisso com o Estado – e o Estado somos nós, cidadãos e espectadores-contribuintes. Dedico estas linhas também a todos os supostos agentes do cinema que estão a dormir confortavelmente com o pesadelo de toda a cinefilia. Esta crónica é dedicada a toda esta gente que, neste momento, só tem razões para estar contente. Veja-se a última obra-prima que, até porque “quem cala consente”, tal intelligentsia só pode patrocinar: “Projecto de Contrato de Concessão da RTP”.
Tinha pensado gastar a parte mais substancial desta crónica a dissertar sobre o presente e o futuro do cinema de animação, começando pelo exemplo de Feral, o frágil filme do luso-americano Daniel Sousa que esteve nos últimos Óscars a concorrer para o prémio de melhor curta de animação (distinção que acabou por ir para Mr. Hublot). Queria falar sobre a perda de valor do tradicional cinema de animação face à generalização da tecnologia CGI no “cinema de carne e osso”; sobre o corte, como nota J. Hoberman no seu mais recente Film After Film, que o digital provocou na relação que existia entre fotografia e mundo – a perda de “indexicalidade” da primeira vis-à-vis a virtualização do segundo – ; sobre esta mais do que aparente confusão crescente entre a animação e as outras categorias cinematográficas, que, partindo da coincidência historicamente constatável desde 2009 entre o Óscar de Melhores Efeitos Especiais e o de Melhor Direcção de Fotografia, Steven Shaviro analisa com as suas doses habituais de sagacidade intelectual no post «The new cinematography».
Talvez comandado pelos maus tiques a que sucumbe a nossa televisão pública, quando diz sim a cada um dos diktates da nem sempre útil actualidade jornalística, decidi pôr no congelador algumas das questões mais prementes do presente e futuro da linguagem cinematográfica, tais como: tornar-se-á Chaplin, como antevê J. Hoberman, uma nota de rodapé no capítulo devotado a Mickey Mouse numa nova história do cinema sob a ditadura da animação? Estaremos nós, como me diz Luís Miguel Oliveira, a assistir a uma espécie de grande vingança do cinema de animação contra a baziniana “ontologia da imagem fotográfica”; à constituição de uma “‘outra coisa’ à margem do ‘cinema a sério'”, que vai sendo progressivamente reduzida a ou posta na dependência de um “‘efeito de realidade’ a expulsar a realidade”? A perspectivação de um cinema todo ele, na sua essência, pós-produzido, de um cinema todo ele “softwarezado”, enformado pelas mesmas ferramentas que deram vida a um Wall-E (2008), implicará ou não uma nova maneira de ver e de dar a ver o cinema?
Face ao desinspirado Feral, milésima variação da história do menino-lobo ou da “criança selvagem”, evocando Truffaut, e face à crise de criatividade do cinema de animação que tem chegado aos Óscares desde sensivelmente Up (Up – Altamente, 2009), também iria especular sobre as diferentes estratégias de sobrevivência que o cinema de animação tout court estaria a pôr em prática, agora que tudo se converte em animação. Não discorrerei, então, sobre as razões que me fazem ver num objecto “de autor” como Feral uma insípida tentativa de convocar de novo o traço – isto é, a dimensão de “desenho” – tal como na grande indústria uma espécie de rendição total à estética e, ao mesmo tempo, à lógica mercantil do videojogo, nomeadamente através da transformação quase automática de relativas boas ideias em séries de filmes (puro franchise) que vão perdendo densidade dramática, agudeza e/ou inventividade formal [vide a serialização/banalização de um Shrek ou da saga Ice Age, a passagem do minimamente original Cars (Carros, 2006) para um derivativo Planes (Aviões, 2013), os decepcionantes “scare games” da prequela de Monsters, Inc. (Monstros e Companhia, 2001), a pouco empolgante continuação do delirante Cloudy with a Chance of Meatballs (Chovem Almôndegas, 2009), etc.]. A hipotética crise da animação em razão do seu monopólio imagi(n)ário é, enfim, um dos assuntos que ficarão para outras núpcias.
Todas estas questões são decerto pertinentes, mas, como digo, vi-me forçado a parar perante um facto anterior. Aliás, diria que estas crónicas Civic TV terão sempre esse (d)efeito: uma espécie de fascínio/fascinação primordial por todos os “factos anteriores” no que diz respeito à programação de cinema na televisão nacional. Neste caso, a anterioridade de tudo o que escrevi até aqui está no facto de Feral ter-me chegado aos olhos através da RTP2, no domingo de Óscares, às 21h57. Passou como têm passado todos os filmes – de animação ou não – nos últimos tempos, isto é, desligado de qualquer contexto fixo ou regular/regulamentado de programação. A diferença aqui é que Feral passou no segundo canal apenas para espremer mais um bocadinho a borbulha da actualidade mediática, tantas vezes fútil, associada ao evento dos Óscares. Não há interesse algum em mostrar o cinema do filme, apenas um acontecimento televisivo que ao cinema pertence circunstancialmente – o cinema dos filmes aparece-nos assim, na RTP2, como dado trivial. No âmbito de uma grelha que transforma os filmes em enxertos para mascarar uma insuficiência ou outra da programação horizontal, Feral foi posto no sítio de todos os vazios: o da vã actualidade mediática. Nada mais sustentou esta passagem.
Há uns meses, a exibição de um filme como Feral seria enquadrada pelo histórico programa Onda Curta, que durante 18 anos foi aguentando todos os ataques ao objecto do seu fascínio: o cinema, mais concretamente o do subestimado formato da curta-metragem (que tanto tem “vingado” nas galerias do YouTube, Vimeo e arredores). Foi aí que vi o fabuloso A Suspeita (2000), filme de animação português que ganhou vários prémios e que mereceu um lugar devidamente enquadrado no segundo canal, ao invés de ter sido usado como grande golpe de uma bem oportunista programação vertical. Não foi só para quem descobriu o cinema de curta-metragem de animação no Onda Curta que a passagem de Feral, naquele dia, àquela hora, com aqueles propósitos, fez pensar imediatamente nos fantasmas que assombram esse cemitério de programas de verdadeiro serviço público de televisão em que se tornou a RTP2. Se a curta de Daniel Sousa nos fala do desenraizamento de uma criança-lobo, o próprio filme era exibido sobre os escombros daquela que devia ser a sua casa natural: o Onda Curta.
A minha perplexidade face à demolição súbita de um dos mais antigos programas da televisão portuguesa não diminuiu com a entrevista que fiz a João Garção Borges, o seu fundador e programador ao longo de cada dos seus 18 anos. Em jeito de resumo para o que já aqui escrevi, importa recordar estas suas palavras: “Porque já não existem especialistas de cinema na RTP? Não há interesse pelo cinema enquanto matéria de programação nos canais ditos generalistas? São perguntas que fazemos e são legítimas face ao que vemos diariamente, na maior parte dos casos, a normalização da oferta concentrada na filosofia de produção orientada para o consumo imediato, onde os programas de fluxo e os de stock se confundem e só vingam se gerarem audiências, leia-se, o lucro”. Todas estas perguntas deviam ser partilhadas por todos os que se interessam pela cultura e educação do país, mas também aqui veiculo a ideia expressa por João Garção Borges, segundo a qual as nossas elites (onde cabe toda a gente, incluindo a civicamente exangue classe de profissionais da arte) perderam “em grande medida a vontade de exigir mais e melhor”. O facto de não haver um único espaço dedicado ao cinema no segundo canal neste momento, a apatia da sociedade ante este facto, nomeadamente das vozes justiceiras que tanto berraram contra a possibilidade do encerramento da empresa RTP, digo, cada um destes elementos é sintomático de como a catástrofe não só é como tinha de ser total.
Mas depois do Apocalipse há sempre um qualquer pós-Apocalipse. E o pós-apocalíptico novo Contrato de Concessão de Serviço Público é o espelho rachado de uma luta que nós, cinéfilos e cidadãos desinteressados, teremos irrevogavelmente perdido. Já escrevi várias linhas sobre a conduta desonesta da RTP2 no que diz respeito ao cumprimento do Contrato que a vinculava ao Estado desde 1999, mas nada de muito significativo se seguiu a essas críticas sem ser agora este lamentável documento que reeditará o fracasso de um projecto, a morte de uma utopia…, em defesa da protecção de uma classe de “trabalhadores” que tomou de assalto – e que, portanto, se confunde com – a empresa RTP. Como dá a entender Garção Borges, o problema nunca se resolveria com o melhor contrato do mundo, já que, com as pessoas que chefiam os destinos da televisão pública, espaços que constituam uma verdadeira alternativa à televisão comercial não sairão do papel ou, avanço eu, se saírem, não terão seguramente um futuro sustentável. O problema é, então, a realidade empresarial do canal, a sua impune senda de destruição do serviço público, este que estava – aliás, exemplarmente – definido e defendido no contrato que agora cessa. Para mal dos nossos pecados, a tutela resolveu proteger a empresa e arruinar mais ainda não só o conceito de serviço público como, desde já, a possibilidade de dele podermos usufruir… um dia, talvez.
O novo contrato é a face da maneira de fazer política em Portugal: uma questão domina todas as outras como se a realidade fosse coisa unidimensional. O actual executivo está obcecado com a independência editorial da RTP em relação ao poder político. Muita gente achará que é uma obsessão que faz todo o sentido. Eu discordo. A independência política da RTP deve ser assegurada, mas condicionar um contrato quase em exclusivo a essa premissa é dar ainda mais poder a uma empresa que criminosamente não respeitou o anterior contrato e que figura entre as “pessoas intocáveis” do nosso país – como eu pude constatar nas minhas idas à Assembleia para debater a Petição pelo Regresso da Exibiçao Regular de Cinema à RTP2. De tal maneira é assim que, se o anterior documento se chamava “Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão”, o projecto que está em discussão neste momento – e que será aprovado, para nosso mal – tem o significativo título “Contrato de Concessão da RTP”. A RTP em primeiro lugar, o serviço público em segundo. Está tudo ao contrário e ninguém tem vontade… vontade de exigir mais e melhor.
A independência política da RTP tem sido fiscalizada – aliás, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) só parece existir e funcionar para isso. No limite, merecerá um reforço no Contrato, mas nunca deverá justificar que se dê (ainda mais) trela a um incumpridor crónico, a uma realidade empresarial corrompida. Pois bem, é isso que se prevê no documento que vinculará as empresas RTP ao Estado durante os próximos 16 anos – a classe de profissionais do cinema que continue a dormir no conforto da sua cama muito bem almofadada que o coma do cinema na televisão será longo. Mas, perguntará o leitor, muito concretamente, o que se prevê no Projecto de Contrato de Concessão da RTP? Por exemplo, no que diz respeito à programação de cinema na RTP2, antevê-se menos obrigações, menos balizamentos, menos responsabilização. O articulado constante na Cláusula 10.ª (citada por mim nomeadamente aqui), que obrigava a RTP2 a ter uma programação de cinema digna desse nome, desaparece por completo, restando apenas formulações genéricas de princípios, tais como os deveres de “assegurar de forma coerente uma programação cultural de qualidade e distinta dos demais serviços de programas televisivos de serviço público” (ponto 2 da nova cláusula 10.ª) ou conceder “particular relevo na sua programação ao princípio da inovação, privilegiando a criatividade, a originalidade e o sentido crítico” (ponto 4 da mesma transfigurada cláusula).
O governo, com o medo que tem das “intromissões políticas” que lhe sejam imputadas, dá assim larga margem à RTP para continuar a sua política de absoluta descaracterização do serviço público. Ao invés de criar mecanismos para impedir que o que aconteceu antes volte a ter lugar, o executivo, sem que haja ruído à volta, decide premiar os piores exemplos. Se o ladrão rouba, muda-se a lei para que ele possa continuar a roubar sem pesos na consciência e sem a chatice de levar com a fundamentadíssima censura da sociedade. O leitor não se sente indignado? Mesmo que não se sinta, não me espantaria que fosse “do cinema”. Eu, pela minha parte, gostava de nunca deixar de ser, antes de tudo, “pelo cinema”. À comunidade de cinéfilos, cineastas, académicos, críticos, etc., endereço o mesmo desejo e um convite à necessária acção.