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À pala de Walsh
Civic TV, Crónicas 0

Serviço público de televisão: a morte de uma utopia e a demissão cívica dos agentes do cinema

De Luís Mendonça · Em 16 de Março, 2014

Na sequência da passagem da curta-metragem de animação que esteve na berra por causa dos Óscares, Feral (2012), e do fim do programa Onda Curta na RTP2 que não esteve na berra em lado nenhum sem ser no À pala de Walsh, faço desta crónica Civic TV uma amarga dedicatória a todos os que têm destruído qualquer possibilidade de uma televisão de serviço público, a cobro de uma defesa de modo algum desinteressada de uma realidade empresarial que nos últimos anos apenas se destacou pela forma exemplar como rasgou sucessivas vezes o seu compromisso com o Estado – e o Estado somos nós, cidadãos e espectadores-contribuintes. Dedico estas linhas também a todos os supostos agentes do cinema que estão a dormir confortavelmente com o pesadelo de toda a cinefilia. Esta crónica é dedicada a toda esta gente que, neste momento, só tem razões para estar contente. Veja-se a última obra-prima que, até porque “quem cala consente”, tal intelligentsia só pode patrocinar: “Projecto de Contrato de Concessão da RTP”.

Tinha pensado gastar a parte mais substancial desta crónica a dissertar sobre o presente e o futuro do cinema de animação, começando pelo exemplo de Feral, o frágil filme do luso-americano Daniel Sousa que esteve nos últimos Óscars a concorrer para o prémio de melhor curta de animação (distinção que acabou por ir para Mr. Hublot). Queria falar sobre a perda de valor do tradicional cinema de animação face à generalização da tecnologia CGI no “cinema de carne e osso”; sobre o corte, como nota J. Hoberman no seu mais recente Film After Film, que o digital provocou na relação que existia entre fotografia e mundo – a perda de “indexicalidade” da primeira vis-à-vis a virtualização do segundo – ; sobre esta mais do que aparente confusão crescente entre a animação e as outras categorias cinematográficas, que, partindo da coincidência historicamente constatável desde 2009 entre o Óscar de Melhores Efeitos Especiais e o de Melhor Direcção de Fotografia, Steven Shaviro analisa com as suas doses habituais de sagacidade intelectual no post «The new cinematography».

Talvez comandado pelos maus tiques a que sucumbe a nossa televisão pública, quando diz sim a cada um dos diktates da nem sempre útil actualidade jornalística, decidi pôr no congelador algumas das questões mais prementes do presente e futuro da linguagem cinematográfica, tais como: tornar-se-á Chaplin, como antevê J. Hoberman, uma nota de rodapé no capítulo devotado a Mickey Mouse numa nova história do cinema sob a ditadura da animação? Estaremos nós, como me diz Luís Miguel Oliveira, a assistir a uma espécie de grande vingança do cinema de animação contra a baziniana “ontologia da imagem fotográfica”; à constituição de uma “‘outra coisa’ à margem do ‘cinema a sério'”, que vai sendo progressivamente reduzida a ou posta na dependência de um “‘efeito de realidade’ a expulsar a realidade”? A perspectivação de um cinema todo ele, na sua essência, pós-produzido, de um cinema todo ele “softwarezado”, enformado pelas mesmas ferramentas que deram vida a um Wall-E (2008), implicará ou não uma nova maneira de ver e de dar a ver o cinema?

Face ao desinspirado Feral, milésima variação da história do menino-lobo ou da “criança selvagem”, evocando Truffaut, e face à crise de criatividade do cinema de animação que tem chegado aos Óscares desde sensivelmente Up (Up – Altamente, 2009), também iria especular sobre as diferentes estratégias de sobrevivência que o cinema de animação tout court estaria a pôr em prática, agora que tudo se converte em animação. Não discorrerei, então, sobre as razões que me fazem ver num objecto “de autor” como Feral uma insípida tentativa de convocar de novo o traço – isto é, a dimensão de “desenho” – tal como na grande indústria uma espécie de rendição total à estética e, ao mesmo tempo, à lógica mercantil do videojogo, nomeadamente através da transformação quase automática de relativas boas ideias em séries de filmes (puro franchise) que vão perdendo densidade dramática, agudeza e/ou inventividade formal [vide a serialização/banalização de um Shrek ou da saga Ice Age, a passagem do minimamente original Cars (Carros, 2006) para um derivativo Planes (Aviões, 2013), os decepcionantes “scare games” da prequela de Monsters, Inc. (Monstros e Companhia, 2001), a pouco empolgante continuação do delirante Cloudy with a Chance of Meatballs (Chovem Almôndegas, 2009), etc.].  A hipotética crise da animação em razão do seu monopólio imagi(n)ário é, enfim, um dos assuntos que ficarão para outras núpcias.

Todas estas questões são decerto pertinentes, mas, como digo, vi-me forçado a parar perante um facto anterior. Aliás, diria que estas crónicas Civic TV terão sempre esse (d)efeito: uma espécie de fascínio/fascinação primordial por todos os “factos anteriores” no que diz respeito à programação de cinema na televisão nacional. Neste caso, a anterioridade de tudo o que escrevi até aqui está no facto de Feral ter-me chegado aos olhos através da RTP2, no domingo de Óscares, às 21h57. Passou como têm passado todos os filmes – de animação ou não – nos últimos tempos, isto é, desligado de qualquer contexto fixo ou regular/regulamentado de programação. A diferença aqui é que Feral passou no segundo canal apenas para espremer mais um bocadinho a borbulha da actualidade mediática, tantas vezes fútil, associada ao evento dos Óscares. Não há interesse algum em mostrar o cinema do filme, apenas um acontecimento televisivo que ao cinema pertence circunstancialmente – o cinema dos filmes aparece-nos assim, na RTP2, como dado trivial. No âmbito de uma grelha que transforma os filmes em enxertos para mascarar uma insuficiência ou outra da programação horizontal, Feral foi posto no sítio de todos os vazios: o da vã actualidade mediática. Nada mais sustentou esta passagem.

Há uns meses, a exibição de um filme como Feral seria enquadrada pelo histórico programa Onda Curta, que durante 18 anos foi aguentando todos os ataques ao objecto do seu fascínio: o cinema, mais concretamente o do subestimado formato da curta-metragem (que tanto tem “vingado” nas galerias do YouTube, Vimeo e arredores). Foi aí que vi o fabuloso A Suspeita (2000), filme de animação português que ganhou vários prémios e que mereceu um lugar devidamente enquadrado no segundo canal, ao invés de ter sido usado como grande golpe de uma bem oportunista programação vertical. Não foi só para quem descobriu o cinema de curta-metragem de animação no Onda Curta que a passagem de Feral, naquele dia, àquela hora, com aqueles propósitos, fez pensar imediatamente nos fantasmas que assombram esse cemitério de programas de verdadeiro serviço público de televisão em que se tornou a RTP2. Se a curta de Daniel Sousa nos fala do desenraizamento de uma criança-lobo, o próprio filme era exibido sobre os escombros daquela que devia ser a sua casa natural: o Onda Curta.

A minha perplexidade face à demolição súbita de um dos mais antigos programas da televisão portuguesa não diminuiu com a entrevista que fiz a João Garção Borges, o seu fundador e programador ao longo de cada dos seus 18 anos. Em jeito de resumo para o que já aqui escrevi, importa recordar estas suas palavras: “Porque já não existem especialistas de cinema na RTP? Não há interesse pelo cinema enquanto matéria de programação nos canais ditos generalistas? São perguntas que fazemos e são legítimas face ao que vemos diariamente, na maior parte dos casos, a normalização da oferta concentrada na filosofia de produção orientada para o consumo imediato, onde os programas de fluxo e os de stock se confundem e só vingam se gerarem audiências, leia-se, o lucro”. Todas estas perguntas deviam ser partilhadas por todos os que se interessam pela cultura e educação do país, mas também aqui veiculo a ideia expressa por João Garção Borges, segundo a qual as nossas elites (onde cabe toda a gente, incluindo a civicamente exangue classe de profissionais da arte) perderam “em grande medida a vontade de exigir mais e melhor”. O facto de não haver um único espaço dedicado ao cinema no segundo canal neste momento, a apatia da sociedade ante este facto, nomeadamente das vozes justiceiras que tanto berraram contra a possibilidade do encerramento da empresa RTP, digo, cada um destes elementos é sintomático de como a catástrofe não só é como tinha de ser total.

Mas depois do Apocalipse há sempre um qualquer pós-Apocalipse. E o pós-apocalíptico novo Contrato de Concessão de Serviço Público é o espelho rachado de uma luta que nós, cinéfilos e cidadãos desinteressados, teremos irrevogavelmente perdido. Já escrevi várias linhas sobre a conduta desonesta da RTP2 no que diz respeito ao cumprimento do Contrato que a vinculava ao Estado desde 1999, mas nada de muito significativo se seguiu a essas críticas sem ser agora este lamentável documento que reeditará o fracasso de um projecto, a morte de uma utopia…, em defesa da protecção de uma classe de “trabalhadores” que tomou de assalto – e que, portanto, se confunde com – a empresa RTP. Como dá a entender Garção Borges, o problema nunca se resolveria com o melhor contrato do mundo, já que, com as pessoas que chefiam os destinos da televisão pública, espaços que constituam uma verdadeira alternativa à televisão comercial não sairão do papel ou, avanço eu, se saírem, não terão seguramente um futuro sustentável. O problema é, então, a realidade empresarial do canal, a sua impune senda de destruição do serviço público, este que estava – aliás, exemplarmente – definido e defendido no contrato que agora cessa. Para mal dos nossos pecados, a tutela resolveu proteger a empresa e arruinar mais ainda não só o conceito de serviço público como, desde já, a possibilidade de dele podermos usufruir… um dia, talvez.

O novo contrato é a face da maneira de fazer política em Portugal: uma questão domina todas as outras como se a realidade fosse coisa unidimensional. O actual executivo está obcecado com a independência editorial da RTP em relação ao poder político. Muita gente achará que é uma obsessão que faz todo o sentido. Eu discordo. A independência política da RTP deve ser assegurada, mas condicionar um contrato quase em exclusivo a essa premissa é dar ainda mais poder a uma empresa que criminosamente não respeitou o anterior contrato e que figura entre as “pessoas intocáveis” do nosso país – como eu pude constatar nas minhas idas à Assembleia para debater a Petição pelo Regresso da Exibiçao Regular de Cinema à RTP2. De tal maneira é assim que, se o anterior documento se chamava “Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão”, o projecto que está em discussão neste momento – e que será aprovado, para nosso mal – tem o significativo título “Contrato de Concessão da RTP”. A RTP em primeiro lugar, o serviço público em segundo. Está tudo ao contrário e ninguém tem vontade… vontade de exigir mais e melhor.

A independência política da RTP tem sido fiscalizada – aliás, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) só parece existir e funcionar para isso. No limite, merecerá um reforço no Contrato, mas nunca deverá justificar que se dê (ainda mais) trela a um incumpridor crónico, a uma realidade empresarial corrompida. Pois bem, é isso que se prevê no documento que vinculará as empresas RTP ao Estado durante os próximos 16 anos – a classe de profissionais do cinema que continue a dormir no conforto da sua cama muito bem almofadada que o coma do cinema na televisão será longo. Mas, perguntará o leitor, muito concretamente, o que se prevê no Projecto de Contrato de Concessão da RTP? Por exemplo, no que diz respeito à programação de cinema na RTP2, antevê-se menos obrigações, menos balizamentos, menos responsabilização. O articulado constante na Cláusula 10.ª (citada por mim nomeadamente aqui), que obrigava a RTP2 a ter uma programação de cinema digna desse nome, desaparece por completo, restando apenas formulações genéricas de princípios, tais como os deveres de “assegurar de forma coerente uma programação cultural de qualidade e distinta dos demais serviços de programas televisivos de serviço público” (ponto 2 da nova cláusula 10.ª) ou conceder “particular relevo na sua programação ao princípio da inovação, privilegiando a criatividade, a originalidade e o sentido crítico” (ponto 4 da mesma transfigurada cláusula).

O governo, com o medo que tem das “intromissões políticas” que lhe sejam imputadas, dá assim larga margem à RTP para continuar a sua política de absoluta descaracterização do serviço público. Ao invés de criar mecanismos para impedir que o que aconteceu antes volte a ter lugar, o executivo, sem que haja ruído à volta, decide premiar os piores exemplos. Se o ladrão rouba, muda-se a lei para que ele possa continuar a roubar sem pesos na consciência e sem a chatice de levar com a fundamentadíssima censura da sociedade. O leitor não se sente indignado? Mesmo que não se sinta, não me espantaria que fosse “do cinema”. Eu, pela minha parte, gostava de nunca deixar de ser, antes de tudo, “pelo cinema”. À comunidade de cinéfilos, cineastas, académicos, críticos, etc., endereço o mesmo desejo e um convite à necessária acção.

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Luís Mendonça

"The great creators, the thinkers, the artists, the scientists, the inventors, stood alone against the men of their time. Every new thought was opposed. Every new invention was denounced. But the men of unborrowed vision went ahead. They fought, they suffered, and they paid - but they won." Howard Roark (Gary Cooper) in The Fountainhead (1949)

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Sem Comentários

  • Samuel Andrade (@sozekeyser) diz: 16 de Março, 2014 em 22:44

    Novamente, um excelente texto sobre uma realidade que, de forma crua, dói e remói junto de quem almeja um panorama cultural digno em Portugal.

    No entanto, não posso deixar de ser (também, novamente), “advogado do diabo” ao realçar as nuances, por parte dos próprios agentes culturais, que minam a concretização de políticas e actuações dignas de quem quer derrubar, cultural e ideologicamente, aqueles que dirigem os destinos da lei e do dinheiro da cultura do nosso país.

    Que “necessária acção” se pode obter quando as próprias associações culturais se revelam plenas de orgulhoso amadorismo, sem o mínimo desejo de “serviço público” (os fundamentos do marketing cultural existem por algum motivo) e ávidas de lucro/protagonismo? Que esperança reside quando se vê alguns Festivais de Cinema dominados pela ausência de organização e para quem basta o “destaque no Público” como meio de divulgação? Como reagir quando o Cinema em Portugal, em quase todos os seus quadrantes, exibe constantemente maus exemplos?

    Também eu sonho com e pretendo uma digna disponibilização pública da Cultura (e, sobretudo, do Cinema) no meu país. E talvez por isso, não posso deixar de salientar que o mal não se encontra apenas num dos lados da barricada.

    Cumps cinéfilos.

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    • Luís Mendonça diz: 17 de Março, 2014 em 23:08

      A exposição da apatia ou desse “orgulhoso amadorismo” é uma forma de acção. Mas é preciso estar desperto e abanar o estado das coisas, no tempo certo. Abraço,

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  • Marta Soares diz: 17 de Março, 2014 em 21:41

    Concordo que a emissão de ‘Feral’ se inscreveu numa “ONDA MEDIÁTICA” e saúdo a sua intervenção que considero absolutamente necessária perante o pouco mediático fim do ONDA CURTA e de uma programação regular de Cinema que manifeste um verdadeiro serviço público (rubrica que pareceu, por pouco tempo, ressuscitada aquando do desaparecimento do CÂMARA CLARA).

    Contudo, o seu retrato do Cinema de Animação deixa-me bastante apreensiva. Posso inferir, do seu raciocínio, que o recurso ao desenho e à pintura tradicionais se reduz a uma tentativa de RESGATE “na era do CGI” e da estética dos vídeojogos? Entre os concorrentes aos Óscares, ‘Feral’ aproxima-se mais de uma dimensão pictórica (colocada acima da narrativa, nesta entrevista a Daniel Sousa – http://www.awn.com/animationworld/daniel-sousa-talks-feral) que, ainda assim, não dispensa o software. Esta aposta nos valores tradicionais plásticos da animação (que se entende perante um considerável conjunto de animadores formados em pintura e ilustração, como Emanuele Luzatti, József Gemes, Regina Pessoa, Sylvain Chomet, entre outros) contribui, na minha opinião ainda pouco sustentada, para um acréscimo das potencialidades do cinema e da própria pintura – o dinamismo do preenchimento a lápis oferece-me extraordinários momentos de fruição visual e não anula, necessariamente, uma boa narrativa (veja-se ‘The Snow Man’, de Dianne Jackson, Jimmy T. Murakami, 1982).

    De forma a completar o seu repertório de filmes de animação nesta crónica, gostaria de invocar filmes em 2D que compõem a cena actual, como ‘Ernest et Celestine’ (longa-metragem nomeada para os últimos Óscares), os filmes de Miyazaki e os de Sylvain Chomet (‘Les triplettes de Belleville’, 2003, e o ‘Ilusionista’, 2008), que se afastam completamente da estética do vídeojogo; conciliam o desenho tradicional (já totalmente informatizado, no caso de ‘Ernest et Celestine’) com a cor dada pelo software e alguns objectos 3D que são tratados de modo a parecer 2D (algo visível no Castelo Andante e em muitos meios de transporte dos filmes de Chomet, ou, se quisermos enveredar pelo formato televisivo, na nave espacial de Futurama). Não encaro a fórmula 3D da PIXAR e da DREAMWORKS (quer ao nível visual, quer ao nível do argumento) como “o destino” do Cinema de Animação, quando ele abrange uma produção tão diversificada, como as programações de festivais (veja-se a Monstra, a decorrer esta semana) ajudam a reequacionar.

    A oposição entre o “Cinema a Sério” e o Cinema de Animação, que, neste momento, “se vinga do índex fotográfico” parece-me ser o ponto mais frágil da sua exposição (protegida por citações e aspas), uma vez que a ontologia dos dois tipos de cinema é, por vezes, diluída. A história do Cinema de Animação apresenta vários casos de incorporação da fotografia através do uso do rotoscópio (nos filmes dos irmãos Fleischer, nalguns dos estúdios Disney e, já com uma intervenção do software, nos filmes de Richard Linklater). Noutros momentos, o live action convive com a animação (e nem estou a pensar na Mary Poppins nem no Roger Rabbit, mas em ‘A meio da Noite’, de Fernando José Saraiva, 2008, que foi emitida pelo ONDA CURTA, em Dezembro de 2013). Nesse filme, a filmagem real (pouco nítida) de uma rapariga toca um violoncelo desenhado e habita um cenário igualmente desenhado, criando um efeito fantasmagórico.

    A mesma sessão que apresentou ‘A Meio da Noite’ começava com ‘Conserva Acabada’. Para mim, era precisamente aí que residia um dos grandes méritos do ONDA CURTA – o de um entendimento NÃO HIERARQUIZADO do cinema. Dava a ver boas curtas metragens, independentemente da técnica, num espaço que não restringia a animação a uma categoria infantil (algo detectável na Cinemateca, cuja programação REGULAR de Cinema de Animação se reduz praticamente a Walt Disney e está confinada à Cinemateca Júnior). Em Lisboa, custa-me a ausência de sessões regulares de filmes de Abi Feijó (veja-se, por exemplo, a sua adaptação notável d’ “Os Salteadores”, de Jorge de Sena), de Regina Pessoa (Grande Prémio Annecy de 2006), de Pedro Serrazina (‘Estória do Gato e da Lua’), de Michel Ocelot, de Jean-Francois Laguionie, de Paul Grimault, cuja extraordinária longa-metragem sobre o fascismo, ‘Le Roi et L’Oiseau’, serviu de referência a Miyazaki e a Isao Takahata, e de inúmeros filmes de animação dignos de ser devidamente integrados na História do Cinema e da Arte do Século XX.

    Esta crónica coloca-me perante um dilema: quero subscrever uma causa com a qual me identifico (a extinção de um serviço público de Cinema), mas receio apoiar essa causa quando é sustentada por um discurso que, NOS MOLDES EM QUE SE PUBLICOU, deixa no ar um conhecimento lacunar, preconceituoso sobre Cinema de Animação e culmina, em última análise, numa cisão que contraria o espírito do programa que procura defender. Pedia-lhe, por esse motivo, que revisse e esclarecesse os seus parágrafos a respeito do Cinema de Animação.

    Com isto, não pretendo ofender nem o autor, nem a programação da Cinemateca, que muito valorizo. Compreendo esta situação à luz de uma carência geral de estudos sobre a História e Teoria do Cinema de Animação.

    Inicie a sessão para responder
    • Luís Mendonça diz: 17 de Março, 2014 em 22:47

      Mesmo não sendo um entusiasta maior da animação (mas gosto bastante de Miyazaki, Chomet e de Regina Pessoa tenho óptimas recordações do seu “A Noite”), não creio haver preconceito algum da minha parte, nomeadamente nesta crónica. Constato apenas, baseado em reflexões que recolhi, que o cinema de hoje, predominantemente pós-produzido, tende a depender cada vez mais das técnicas modernas da animação. A esta pan-animação junta-se um declínio de criatividade dos últimos títulos de animação “tout court” da grande indústria. No caso de “Feral” e dos realizadores que aponta, a dimensão pictórica parece ser um caminho possível de resistência à estética computacional – se não é voluntária esta resistência, pelo menos nestes Óscares, resultou aos meus olhos como tal. Mas, de facto, não gostei de “Feral”.

      As aspas que pus, nos pontos que levanta, são atribuíveis ao autor citado, Luís Miguel Oliveira, e estão postas em modo interrogativo por mim. De qualquer maneira, revejo-me perfeitamente na ideia de uma “grande vingança” do cinema de animação contra o de carne e osso, uma vingança que não qualifiquei nem como positiva nem como negativa.

      Posto isto, não vejo nada no seu muito bem informado comentário que eu não subscreveria. E até acho que serve de complemento a muito do que não escrevi, mas gostaria de ter escrito.

      Inicie a sessão para responder
      • Marta Soares diz: 17 de Março, 2014 em 23:08

        Agradeço imenso a sua resposta pronta.

        Fico especialmente satisfeita por não ter levado a mal a minha intervenção, que não pretendia, de modo algum, ofender. Compreendi que reproduzia um breve estado da questão sobre o futuro da animação e da tendência para a pós-produção no cinema de filmagem real, e compreendi também que as suas aspas introduziam um grau de resistência às citações, mas senti que precisavam de um esclarecimento adicional (como aquele que me prestou agora).
        Muito obrigada.

        Inicie a sessão para responder
  • Ana Oliveira diz: 18 de Março, 2014 em 17:18

    Agradeço os comentários de Marta Soares a este artigo, que me pouparam o ter de responder nos mesmos termos a algumas generalizações feitas sobre o cinema de animação. Queria apenas acrescentar que embora seja uma técnica ou artista (como preferirem) de 3D/CGI, não sou uma entusiasta a 100% desta tecnologia, que parece ser cada vez mais um fim em si e não um meio, seja no cinema de animação ou no cinema dito oficial.
    Feita esta declaração de intenções, e seguindo o exemplo da Marta, queria sugerir-lhe a curta de animação “Pythagasaurus” da produtora Aardman, o melhor exemplo de animação 3D que vi nos últimos tempos, e referir a série “Archer”, que combina cenários 3D com um 1.º plano em desenho clássico 2D, uma técnica que na minha modesta opinião tem tido resultados mais criativos (em diferentes projectos), do que o uso total de CGI.
    Por fim, confesso-lhe que partilhei este artigo nas redes sociais com alguns contactos na animação nacional, sem ter lido o seu artigo na totalidade, que pensei tratar-se apenas da defesa do programa “Onda Curta”. Se o meu gesto originar mais respostas um pouco irritadas, as minhas desculpas.
    No hard feelings, sr. Luís, no hard feelings…

    Inicie a sessão para responder
    • Luís Mendonça diz: 18 de Março, 2014 em 18:40

      Obrigado pelo comentário e pelas partilhas.

      Um esclarecimento: eu não ataco o cinema de animação. Muito pelo contrário!

      O gostar ou não de “Feral” é um pormenor no texto, onde refiro que o mais importante é haver um espaço regular de cinema que suporte a passagem de curtas-metragens, sejam elas animadas ou não. Até refiro, a título pessoal, uma recordação feliz que tenho do Onda Curta: precisamente a da passagem da curta de animação “A Suspeita”.

      Inicie a sessão para responder
    • Marta Soares diz: 19 de Março, 2014 em 2:11

      Ana Oliveira, agradeço o seu comentário. Agora fiquei com vontade de ver a série ‘Archer’ e achei muito divertido o ‘Pythagasaurus’.

      Confesso que também me interessam mais as técnicas “impuras” (o 3D dissimulado em 2D, a fotografia manipulada total ou parcialmente pelo desenho – que hoje vi em, pelo menos, 2 curtas da Monstra datadas de 2012-13) e o desenho/pintura tradicionais do que o 3D/CGI isolado. Até há pouco tempo, era bastante relutante face ao 3D/CGI, mas algumas curtas-metragens ajudaram a reformular a minha posição. Estou a pensar, por exemplo, em ‘Alma’, de Rodrigo Blaas, 2009 (https://www.youtube.com/watch?v=tECaYQ1AzkM), em ‘Maestro’, de Géza Tóth, 2005 (https://www.youtube.com/watch?v=X1h_Zd7VKwM) e no próprio ‘Mr. Hublot’, que me parece muito interessante e julgo-o merecedor do Óscar que recebeu. Gosto de destacar ‘Alma’, na medida em que pensa a etimologia (anima) e o animismo associado aos brinquedos que está na base do trabalho de animação (daí eu considerar feliz a escolha do 3D para os brinquedos do ‘Toy Story’). Apercebi-me, a dado momento, de que a minha aversão ao 3D/CGI se devia à amostra da maioria das longas-metragens da Pixar, da Dreamworks & Companhia, que servem sobretudo intuitos comerciais e que equivalem, na minha opinião, a filmes live-action de domingo à tarde na TVI. Essa “fórmula” tende a reduzir uma TÉCNICA que não é, em si mesma, negativa a um GÉNERO que, para mim, nada tem de dignificante para a animação e que está na origem de muitos preconceitos. O cinema de animação é constantemente minado por essa questão do género e da categoria quando é relegado para um plano infantil ou inferior. Mas nem sempre é preciso ir aos festivais para encontrar algumas linhas de resistência (quer ao nível da técnica, quer ao nível da categoria). Imensas séries de animação japonesa e as séries de animação produzidas pela FOX (como os ‘Simpsons’, o ‘Futurama’, o ‘Family Guy’ e outras do mesmo estilo) são formas de sátira (sobrevivências da caricatura do século XIX/início do século XX) e recorrem ao 2D.

      Recuando um pouco na história da RTP, aproveito para relembrar os programas de Vasco Granja (que cito apesar de não os ter seguido, porque nasci posteriormente), que prestavam um serviço regular de divulgação e comentário ao Cinema de Animação, e a existência de uma programação riquíssima (em quase todos os canais, públicos e privados) de séries e de filmes de animação que povoaram a minha infância nos anos 90. De muitas séries, que eu encaro como património da literatura juvenil/tradicional e, nalguns caso, adulta (refiro-me ao projecto World Masterpiece Theatre, da Nippon Animation, que incluía a ‘Ana dos Cabelos Ruivos’, ‘As Aventuras de Tom Sawyer’, ‘Mulherzinhas’, ‘A Família Trapp’, que deveria estar presente pela sua crítica ao nazismo, e a algumas séries produzidas pela Mondo TV, como a ‘Branca de Neve’ e a ‘Cinderella Monogatari’, que introduz uma reflexão sobre o poder e apresenta curiosas intertextualidades nalguns episódios), apenas vejo resgatadas para as novas gerações ‘As Navegantes da Lua’, no Canal Panda, e o ‘Dragon Ball’, na Sic Radical… Enfim… É algo que também contribui para a formação de um retrato do Cinema de Animação no público em geral: o de um cinema limitado, sem vias de resistência e sem memória…

      Luís Mendonça, queria agradecê-lo pelo espaço de debate que nos proporcionou. É um privilégio discutir estes assuntos abertamente.

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      • Luís Mendonça diz: 19 de Março, 2014 em 8:40

        Obrigado eu/nós. Agradeço a recordação que faz de uma pessoa tão importante para a divulgação do cinema de animação em Portugal: Vasco Granja. Também não é da minha geração, mas sei que marcou um tempo e um modo de fazer televisão. Verdadeiro serviço público.

        Inicie a sessão para responder
  • IndieLisboa 2014: post-scriptum | À pala de Walsh diz: 7 de Maio, 2014 em 12:08

    […] sob o regime do terror – ou envolver-me em guerras pequeninas que não me dizem respeito. Já disse e repito: não tenciono ser mais rapidamente do cinema […]

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