Eu, que pouco ligo à histeria dos desmancha-prazeres (vulgo, spoilers) em críticas (mas também evito ler sobre um filme que queira ver), deixo um vivo conselho aos leitores deste texto: não leiam absolutamente nada sobre The Congress (O Congresso, 2013) antes de o verem. Não leiam a sinopse (que, de qualquer das formas, só pode ser redutora) e muito menos o que resta desta crítica. Não posso ter a certeza que o impacto seja menor se o fizerem, mas restam-me poucas dúvidas de que a experiência se tornou mais extraordinária por não saber ao que ia. O simples facto de revelar que é melhor encontrar The Congress sem qualquer expectativa é criar uma expectativa, bem sei, o que significa nem deveriam ter começado a ler isto.
Claro que este pedido para que não me leiam tem muito a ver com a grande probabilidade de me vir a espalhar ao comprido nos parágrafos seguintes. É muito complicado criticar The Congress sem cair numa adjectivação facilitista – “surreal”, “onírico”, “psicadélico”. Mesmo que seja a mais certeira, jamais fará inteiramente jus à obra em questão, muito provavelmente por esses adjectivos estarem gastos ou serem tantas vezes mal empregues. Também é dificílimo enquadrar The Congress numa qualquer grelha de análise comum. Como não obedece às regras da narrativa cinematográfica, antes regendo-se por uma ilógica cujo sentido apenas se intui, não permite que se comente a temática, as personagens, o enredo, etc., até porque quando o espectador pensa que “apanhou” o filme este dá uma guinada que o deixa às aranhas.
Ao princípio, nas sequências em imagem real, parece que vai pelo caminho da sátira a Hollywood, fazendo lembrar S1m0ne (Simone, 2002) de Andrew Davies. Há uma actriz – Robin Wright a interpretar-se a ela própria – a quem um patrão do estúdio Miramount (uma óbvia alusão à Paramount) – Danny, filho de John Huston – quer comprar a imagem, com a intenção de guardá-la digitalmente e usá-la livremente em futuras produções sem ter de se preocupar com os anseios e caprichos da versão humana (pode parecer que não, mas faz sentido). Há um Harvey Keitel, meio alheado, a fazer de agente cínico, com um dos grandes monólogos desta década. É um início interessante, que, perante o que se segue, é de certeza o pior do filme. Logo que entra a animação, na qual Ari Folman se notabilizou com o extraordinário documentário Vals Im Bashir (Valsa com Bashir, 2008), e o universo se aproxima de The Futurological Congress de Stanislaw Lem, que o israelita adapta, all bets are off, e o nível de What the Fuckness (e o espectador murmura para si mesmo WTF!, assim em inglês, vezes sem conta) vai crescendo.
É arriscado escrever que The Congress é o único filme verdadeiramente original dos últimos tempos, principalmente se se tiver em conta que traz à lembrança a obra de Hayao Miyazaki [uma óbvia influência – não só na animação, como no espírito: tem algo de Sen to Chihiro no kamikakushi (A Viagem de Chihiro, 2001)] ou mesmo da Disney dos primórdios [A Ilha dos Prazeres de Pinocchio (Pinóquio, 1940)] e filmes sobre realidades paralelas como eXistenZ (1999) e The Matrix (Matrix, 1999), só que é esse sentimento que fica no espectador. Contudo, o filme de que estará mais perto, se se descontar as aparências, é Synedoche, New York (Sinédoque, Nova Iorque, 2008) de Charlie Kaufman, pela vontade de abarcar a natureza humana ou, pelo menos, a experiência humana: a velhice, a morte (os desenhos animados não morrem), o desgosto, o amor. São ambos projectos megalómanos dos seus criadores que, ao contrário do que costuma suceder, conseguem alcançar aquilo a que se propõem. Haverá quem não aprecie a “incoerência”, o “absurdo pelo absurdo”, o “pretensiosismo”, mas esses apenas são defeitos quando a tentativa falha, quando as qualidades ficam aquém das pretensões. O que não é o caso. The Congress é, até ver, o grande filme de 2014.