Desde 1999, ano de estreia de The Sopranos, que se está a viver época dourada da televisão norte-americana. Pelo menos, é o que se diz. Não ponho em causa que houve um conjunto de séries televisivas muito boas ou excelentes nos últimos anos – The Wire e Deadwood continuam a ser das melhores ficções tout court do novo milénio e, a nível da comédia, terá havido mesmo uma pequena revolução meta-referencial, de que séries como Arrested Development ou Community são exemplo -, mas também considero que se sobrevalorizou muita coisa para dar mais solidez à ideia da suposta “Idade do Ouro”. Dexter (lá estou eu), por exemplo, é claramente mediana e foi elevada aos píncaros por ser chico-esperta (assim como Weeds e Californication, curiosamente todas séries da Showtime, a HBO dos pobres) e, a esta distância, mesmo Six Feet Under parece bem pior do que à época [ou melhor, a real valia de Alan Ball estará mais perto de True Blood do que aquilo que se queria ver em Six Feet Under; ou ainda melhor, American Beauty (Beleza Americana, 1999), meu ódiozinho de estimação, nunca foi grande coisa].
Muitas vezes confunde-se negrume, circunspecção, sisudez e quebra de tabus (que, na televisão, ainda eram alguns) com qualidade, uma óbvia falácia. Basta pensar na trilogia Batman de Christopher Nolan, cujos tons negros obscureciam os argumentos mal escritos e desconchavados, para não escrever ridículos. Desta sobrevalorização da televisão actual, além da obrigatória desvalorização daquilo que está para trás (ao contrário do que se pensa, houve séries óptimas antes do final dos anos 90), construiu-se o pensamento de que esta é largamente superior ao cinema que se faz hoje em dia. O facto de essa ideia se manter de pé só pode ter duas razões: ou ninguém anda a ver filmes ou apenas viu três ou quatro séries na última década. O único argumento que sempre julguei certeiro (até porque é perfeitamente evidente) é o de que a televisão é o meio do argumentista e que, por isso, a sua escrita poderá talvez ser melhor do que a do cinema (ou poderá ser tão-só diferente). De resto, por mais de uma vez nesta crónica, defendi a proximidade entre a série televisiva e o romance (no que não estou sozinho; aliás, estou longe de ter sido a primeira pessoa a afirmá-lo).
A recente e muito louvada True Detective contraria algumas destas ideias e reforça outras. Apesar de ser obra de um romancista, Nic Pizzolatto, concordo com Alison Willmore neste artigo da IndieWire: a importância do argumento é bem menor do que a da atmosfera sombria, a da interpretação dos actores principais – os consagrados Matthew McConaughey (sou incapaz de escrever este nome sem recorrer ao auxílio das internetes) e Woody Harrelson – e a da realização. Ou seja, True Detective tenta mais ser cinema do que romance. Willmore, ao escrever o artigo após o quarto episódio da primeira temporada da série (portanto, a metade do caminho), releva o exímio plano-sequência que o encerra: durante cerca de seis minutos, a câmara persegue os protagonistas no meio de perigosa operação que envolve muitos tiros entre diferentes bandos de malfeitores. É tão vistoso como pouco visto em televisão, da mesma maneira que é pouco habitual um único realizador assinar todos os episódios de uma temporada, como acontece com Cary Joji Fukunaga nesta série. No entanto, como defende a articulista, estas qualidades cinematográficas escamoteiam a escrita, que é pouco mais do que medíocre.
Um reparo: os argumentos de True Detective não são propriamente maus. A série segue-se com agrado, não só pelas qualidades atrás descritas – e a interpretações de Harrelson e McConaughey (é assim, não é?), este último no papel de herói torturado que debita frases niilistas a uma frequência assustadora, são deliciosas -, como pela própria história. O enredo assemelha-se aos negríssimos livros de James Ellroy, apesar de a ninguém, nem ao próprio Pizzolatto, ter ocorrido esta referência: há violência, há violações, há mortes atrozes, há um mistério horrendo (há até uma aproximação ao terror), há uma conspiração intricada, há uma dupla de polícias obcecados com os crimes, que lhes assombram a vida durante várias décadas. Contudo, também há muita frase pseudo-profunda dita com o olhar no vazio, a conspiração não dá em lugar algum, a lógica é sobretudo de buddy movie (o polícia maluco e o polícia hipócrita afinal podem ser os melhores amigos), pior, por muito que a acção ande para trás e para a frente no tempo (e os cabelos postiços também), muitas das ideias são estafadíssimas, repetidas incontáveis vezes e muito mais bem noutras ocasiões, outras são meras facilidades narrativas (os polícias afro-americanos servem como dispositivo para o relato do passado, não têm literalmente outra função, apesar dos ameaços). Não consigo entrever a misoginia sobre a qual Emily Nussbaum escreve na New Yorker (mas também tenho uma grande dificuldade em entrever misoginia onde quer que seja, um problema meu), no entanto, não posso discordar de que a série é muito mais estilo do que substância. Ao lado da de The Wire (e sei que a comparação é injusta, mas serve relativizar elogios exagerados), a qualidade da escrita é risível.
Não haverá necessariamente um problema em a forma ser mais importante do que o conteúdo, a grande questão é que a forma não resulta lá muito bem (ou está no meio errado). Se muita gente se queixa de que o esbatimento das diferenças entre televisão e cinema tem sido prejudicial para este último, True Detective vem demonstrar que o contrário também é verdadeiro: quando a televisão quer ser cinema acaba por ser uma espécie de cineminha, que não aproveita as qualidades da televisão.