Não é todos os dias que estreia um filme do Cazaquistão nas nossas salas. Por isso é impossível não pensar no cazaquistanês Tulpan (2008), a primeira e até agora única ficção de Sergei Dvortsevoy, estreado por cá faz poucos anos. Encontramos a mesma estepe e as mesmas gentes desterradas no meio do nada, mas estou em crer que Emir Baigazin quis desde logo fechar essa possível associação – porque, de facto, além do referido nada aproxima os filmes. Onde um vivia de um desejo de documentação cândida das relações, o outro trabalha sobre a violência real e atmosférica – e por isso começa o filme com a matança de um borrego. Quem viu Tulpan não poderá ter esquecido esse parto de um bezerro que era “uma extraordinária explosão de realidade” – e fazia a figura de clímax emocional no filme -, por isso quando um dos primeiros planos de Uroki garmonii (Lições de Harmonia, 2013) mostra o degolamento de uma ovelha, seguido de esfolamento e estripamento, percebemos que Dvortsevoy ficou à porta e com ele a comédia de não-casamento e tudo o que a acompanhava, a destacar, uma doçura no olhar e um desejo de contrariar as privações do meio.
Uroki garmonii pode (e deve) ser visto como o resultado daquilo que vem sendo o cinema da moda que se traduz – como resumiu o Luís Mendonça – numa “linear, elliptical and almost invisible diegesis, the sparse use of dialogue, the preference for long takes, the mix of non-professional and professional actors, the stretching of time vis-à-vis a sense of spatial closeness, etc.“. Mas a propósito de quem escreveu o Luís estas palavras? De João Salaviza, está claro. A aproximação entre o português Salaviza e o cazaque Baigazin é feita pelo cinema ao gosto dos dias, ainda que um mundo de intenções os separe. E é nessa separação que o cinema de João Salaviza ganha ao outro: onde um trabalha sobre o momento da rodagem tentando construir o filme frente à câmara e assim produzir objectos de uma fragilidade por vezes tocante, Emir Baigazin esculpe o argumento no sentido do polimento total, todos os simbolismos são organizados no sentido da sua revelação narrativa (o copo, a lapiseira, a tortura das baratas), todos os momentos são encenados com vista a um desenlace (a aula sobre armamento, a aula sobre Gandhi ou os episódios da cadeira eléctrica miniatura), enfim, a monumentalidade da escrita sufoca como jibóia toda a liberdade dos personagens, dos actores, dos próprios movimentos de câmara. Numa expressão simples o que perturba Uroki garmonii é estar demasiado escrito – sintoma mais evidente da síndrome que afecta quase todo o realizador estreante.
Deste ponto de vista podemos aproximar mais facilmente Baigazin de um realizador como Antonio Campos – e em particular os seus primeiros filmes, este e Afterschool (Depois das aulas, 2008) – ainda que com as relativas distâncias de um certo pendor estetizante no caso de Campos. Ou seja, ambos os filmes tomam o espaço da escola como epicentro de uma história sobre a violência e as organizações de poder – já que aí, pela inaptidão dos bullies, os canais de autoridade estão todos descarnados e, como tal, revelam de forma evidente aquilo que são as estruturas da força que nos comandam o quotidiano.
No filme de Campos a preocupação era o espaço virtual da Internet como local de fermentação do desvio moral – o horror tantas vezes repetido em vídeos do YouTube acaba por dessensibilizar qualquer um – e por isso o nosso protagonista matava sem sentir culpa (e a câmara filmava-o de forma igualmente insensível – a do realizador e a outra que documentava a “verdade”). Na estepe do Cazaquistão não há colégios privados para meninos ricos e cocainómanos e, no entanto, o realizador consegue encenar um mesmo meio propício à decantação da maldade – no sentido em que esta respinga de cima e contamina tudo e todos.
É aqui que Uroki garmonii se revela, na forma como vai mostrando gradualmente que acima de um vilão há sempre outro e abaixo dos inocentes há sempre quem os olha com temor. O nosso protagonista – chacota da escola por não ter passado uma prova de masculinidade – corresponde à ralé da sociedade escolar, no entanto ele é igualmente bullie das baratas que infestam a sua casa – diverte-se a electrocutá-las com requintes de malvadez. Mas se conhecemos primeiro o malvado Bolat, terror da pequenada, pouco demora para que descubramos que acima dele há outros, os gémeos temíveis (que também dizem reportar a forças superiores). E por cima de todos há a polícia, corrupta e abusadora, que preenche os horrores das sequências finais do filme. Como se a organização manca que conhecemos na escola (cuja direcção favorece) se propagasse para fora com uma pequena diferença: o poder fictício dos bullies passa a efectivo como figura de autoridade – no fundo os mesmos actos só que agora caucionados por um distintivo.
De forma semelhante também Hugo Pedro em Primária (2013), na curta-metragem que acompanha a sessão, encontra no espaço da escola um sítio de tormento. No mesmo sentido do filme de Baigazin (só que de forma ainda mais vincada e vítima dos tiques Canon) as intenções políticas do realizador são mais do que expostas e a tese antecede o argumento. Ou seja, a Pedro interessa expor um sistema de ensino onde a criança não tem espaço para ser criança e é obrigada aos deveres, ao exercícios, ao estudo e aos exames (o monstro terrível e injusto que atormenta aquela 4.ª classe) sendo que para isso constrói um mundo de felicidade no pré-genérico (um lugar de promessa, de brincadeira e divertimento) para logo depois introduzir a figura temível do professor sempre em fora de campo, sempre autoritário – e daí em diante vale tudo, choros, inseguranças e a ignorância papalva das palmas (como se a primária fosse um lugar de formatação orwelliana).
No fundo o que incomoda em ambos os filmes é a forma como tudo é filmado ao sabor de uma intenção política disfarçada por um virtuosismo no enquadramento e na mise en scène.