Medir o pulso aos dias que passam é coisa que nem sempre se consegue com o mesmo grau de eficácia que um monitor de frequência cardíaca. Isto porque o problema está em saber onde agarrar: num indivíduo está bem de ver que se deverá começar pelo pulso, mas os dias que passam não têm pulso e muito menos têm mão ou braço. Por esta razão os avaliadores da tensão arterial/social discordam tantas vezes nos seus diagnósticos, porque cada um agarra o membro que mais lhe apraz, e como tal as avaliações divergem. Há portanto que saber agarrar o sítio certo – com risco de se falhar o intento científico, está claro.
Esclareçamo-nos então. Os dias que passam têm trazido palavras e expressões recorrentes, atitudes e opções próximas. Enfim, sente-se uma sintonia nas coisas que acontecem, como se um maestro estivesse orquestrando tudo com gosto particular pelas harmonias repetitivas. Essas palavras e essas opções são, em particular: crowdfunding e financiamento popular. Em poucas semanas ouvi-as em vários sítios, murais, canais, programas, artigos, notícias e tudo o mais. Sinto portanto que este será um bom local para agarrar, já que se sente a pulsação forte e o ritmo elevado.
Identificado o membro, há que o avaliar: o crowdfunding é um sistema alternativo de financiamento para projectos das mais variadas naturezas; baseia-se na existência de uma plataforma digital onde cada visitante pode, se o projecto o interessar/convencer, apoiá-lo com uma doação que não raras vezes vem retribuída de alguma forma de benesse (e também se dá o caso em que a doação é sim uma aposta que se pretende traduzida em retorno futuro – nem tudo é pois feito a fundo perdido). No entanto, por norma, o dinheiro não é descontado senão quando se atinge o objectivo proposto, isto é, se não se atinge o patamar desejado, nada se faz – ou tudo ou nada. [E claro, a plataforma que torna tudo isto possível ou recebe por cada doação uma taxa fixa ou recebe uma percentagem do bolo final.]
Feita a avaliação, há que botar considerandos. O que se vem percebendo é que para alcançar os objectivos por esta via há que cumprir uma série de requisitos próprios daquilo que é a volatilidade das redes sociais. Ou seja, por um lado os proponentes têm que conseguir manter, durante o período em que estão abertos a donativos, a batata sempre quente: não se pode deixar morrer o assunto, tem que se estar constantemente a assaltar os murais das gentes com notícias, vídeos, pedidos, novidades do projecto – vale tudo para que a coisa não esfrie. Por outro lado, há que saber escolher a plataforma própria para o projecto – se é de dimensão nacional, talvez não faça sentido seguir para sítios dos estranjas ou, se essa condição não se põe, então o público limitado do país pode não servir os intentos.
É no entanto de muito má índole e de muito pouco gosto pelo espírito científico que se retire desta análise aquele que é o factor fundamental de toda a questão: mais que o trabalho de assalto às redes sociais ou a escolha do local de agregação financeira, a chave-mestra da questão prende-se com o próprio projecto. Posto por outras palavras, um projecto terá tanto mais sucesso quanto mais interesse consiga despertar e claramente para isso o mais importante é mesmo que seja interessante e chegue a pessoas interessadas. Restringindo-nos ao cinema, esse interesse manifesta-se de duas formas possíveis: uma, o realizador/produtor/actor/o-que-quer-que-seja tem um poder de influência social que lhe permite fazer girar em si o interesse dos meios de comunicação ou de uma horda de apoiantes e fãs que garantam a propulsão do projecto, duas, o tema do projecto e/ou a personalidade sobre a qual ele versa têm esse poder anteriormente referido.
Concretize-se então o que há a concretizar. Quatro projectos de natureza distinta são colocados sobre a pantalha do verde relvado chroma key: dois já vencedores, outros dois incógnitas para o adepto. Mas claro, todos sabemos em que posição no arco narrativo se incluem o prognósticos… no segundo acto, está bem de ver. Prognostique-se então o que há a prognosticar.
Os projectos vencedores são portanto dois documentários que encaixam na gaveta “sobre uma personalidade com o poder de…”, a saber: Mudar de Vida – José Mário Branco, vida e obra (2014) sobre a dita vida e a dita obra de José Mário Branco que angariou 7750 euros de 204 pessoas e Uivo (ainda em produção) sobre a também vida e também obra de António Sérgio, tendo angariado 3893 euros de 117 dadores – projecto de Eduardo Morais que já havia realizado outro documentário musical com este método de financiamento. Há nestes casos de sucesso a revelação de dois dados interessantes: primeiro, a noção de que nestes casos não se pode pedir muito dinheiro (não vá a gentalha achar que há gente a querer viver de fazer filmes); segundo, os documentários sobre ícones populares são ideais para este género de financiamento (já que a base de apoiantes precede o filme). Os casos incógnitos são assim: Por Ela, que pretende angariar 100.000 euros e conseguiu até ao momento 30161 euros de 1561 apoiantes, e Nos Interstícios da Realidade – O Cinema de António de Macedo, que deseja chegar aos 5000 euros, não passando dos 372 (de 11 financiadores) até à data deste parágrafo. O primeiro uma longa-metragem de ficção germinada por Nuno Markl (que conseguiu fazer confluir nomes como César Mourão, Tónan Quito e Ana Bacalhau – os protagonistas – João Só e Samuel Úria – a banda sonora – Ricardo Araújo Pereira – o cameo) que aponta para um altíssimo valor (e riem-se as pessoas que sabem o custo de um filme), já o segundo trata-se de um trabalho de amor de João Monteiro – director do Motelx e amador incondicional do cinema de António de Macedo – que procura não mais que o apoio para a pesquisa e cópia de excertos dos filmes de Macedo (depositados quer no ANIM quer no arquivo da RTP) a fim de poder terminar um documentário que vem produzindo há anos.
Não deixa de ser irónico que o grau de incógnita dos dois referidos projectos seja muito baixo, isto é, não custa muito perceber que ambos estão gorados a não alcançar o todo e a ficarem-se pelo pequeno nada. O interessante é perceber que os motivos desse fado são distintos. Por Ela tinha tudo para sair triunfante (as personalidades públicas, a comédia romântica, a dinâmica nas redes sociais – mais de 18 mil gostantes facebookianos) e no entanto mal chega a um terço do valor desejado porque teve a ousadia de pedir demais – e conhecendo os princípios básicos da motivação, a distância ao resultado é inversamente proporcional ao desejo de o alcançar. No caso de Nos Interstícios, o falhanço vem de um inicial lançamento falhado na plataforma zarpante (cá está a importância da escolha acertada), perdendo assim os vapores da partida – vapores esses, de tinta preta, em quase todos os jornais de referência. Mais que essa falsa partida, o insucesso do crowdfunding para o projecto de João Monteiro (lançado pelo Fundo de Apoio ao Cinema que, não tendo verba para ajudar o filme, decidiu-se por este método alternativo) prende-se com o desinteresse geral pelo próprio António de Macedo e o seu cinema insubordinado.
E aqui é que reside a verdadeira e triste ironia. Um realizador que, tendo conseguido alguns dos grandes sucessos de público do cinema português em Portugal, e que deixou de filmar por uma política do gosto de júris e outras altas patentes culturais, vê agora uma total apatia desse mesmo público e uma mesma indiferença desinteressada das mesmas patentes sobre a sua obra e legado. Ouve-se a certa altura no aperitivo ao documentário um Edgar Pêra dizendo “É mais importante desafiar o gosto do que ter bom gosto” e foi isso que Macedo sempre fez, incondicionalmente. O seu cinema foi sempre lateral à crowd, por isso não é com surpresa que ouvimos a silenciosa crowd gritar: go fund yourself!