O último filme de Mizoguchi, Akasen chitai (A Rua da Vergonha, 1956), é um dos mais poderosos filmes sobre prostituição alguma vez filmado. Um mergulho na tragédia da condição feminina no Japão do pós-guerra, esta obra essencial passa amanhã na Cinemateca Portuguesa.
As mulheres estão no centro do cinema de Kenji Mizoguchi. Desde as suas obras nos tempos do mudo até ao seu derradeiro filme, este Akasen chitai, as agruras da experiência feminina no Japão foram uma constante preocupação do cinema do mestre japonês. Figuras de prostitutas e gueixas tiveram um lugar especial entre as suas personagens e o mundo nocturno, confinado e sombrio onde decorre Akasen chitai não é de todo uma atmosfera nova para Mizoguchi (ou outros cineastas japoneses seus contemporâneos). No entanto, Akasen chitai é também um olhar novo (moderno?), um olhar para o momento presente com uma urgência desesperada que se afasta um pouco das evocações histórico-imaginárias de outros filmes-chave de Mizoguchi. O filme foi feito enquanto se discutia na Dieta Nacional (o parlamento japonês) uma lei anti-prostituição (seria aprovada pouco depois da estreia do filme) – discussão política que ecoa no filme e enquadra a sua actualidade – e Mizoguchi quis, sem sucesso, filmá-lo on location nos bordéis de Yoshiwara (zona associada à prostituição legal em Tóquio desde o período Edo). Mas mesmo filmado em estúdio, e mesmo nuns (aparentemente) escassos 85 minutos, é notável como Mizoguchi recria a rotina diária das mulheres em que se centra o filme, a sensação de repetição – por vezes mesmo de prisão (veja-se a limitação dos cenários) – que as suas existências levam. E como através de uma série de elementos, do guarda-roupa à banda sonora (sons electrónicos convivem com cantigas tradicionais), é explorada a complexa convivência de continuidades e rupturas.
Apresentemos as protagonistas. Yasumi (Ayako Wakao), a estrela do estabelecimento, explora o sistema que a explora a ela. Forçada a prostituir-se quando o pai é implicado num escândalo de corrupção, manipula os clientes e é mestre de agiotagem com as companheiras até conseguir comprar a respeitabilidade ao tornar-se uma businesswoman à frente de um negócio menos controverso que o do sexo. Yumeko (Aiko Mimasu) vende o corpo para sustentar o filho, com quem sonha viver quando se “reformar”. Mas este, já crescido e empregado numa fábrica, tem vergonha da mãe e renega-a numa das sequências mais tristes do filme. É uma das histórias do filme que mais vai beber a modelos anteriores do cinema japonês mas isso não lhe retira força, antes pelo contrário. Mickey (Machiko Kyo), a recém-chegada com nome de cartoon e vestes à “ocidental” (todas as outras vestem quase sempre quimonos, com algumas cenas em torno dos tecidos que são puros momentos Mizoguchianos), é, à primeira vista, demasiado atiradiça e irascível. A cena do reencontro com o seu pai, no entanto, ilumina a sua coragem aos olhos do espectador, ao colocar o progenitor, e não ela, como a figura maior de hipocrisia e corrupção de valores. Yorie (Hiroko Machida), gasta as poupanças num enxoval para a dona-de-casa casada que sonha vir a ser, mas quando finalmente deixa o bordel para casar é uma servidão ainda maior que encontra. Hanae (Michiyo Kogure), esposa e mãe, voltou a prostituir-se porque é a única fonte de sustento da família.
Todavia, Akasen chitai não é essencialmente um filme-denúncia dos horrores do mundo da prostituição. Expõe as suas ligações à pobreza, mostra as diferentes formas de exploração feminina que ele encerra e mostra o seu estigma social – a ser debatido o seu fim legal no parlamento e com a vergonha corporizada no filho de Yumeko. Mostra também a dualidade dos donos do bordel, que se vêem como “agentes sociais” que mantêm as raparigas longe da miséria das ruas e como continuadores de uma tradição de cortesãs que eram tratadas como “nobreza”, mas que, ao mesmo tempo, lucram com a venda dos seus corpos ditada pelas duras condições de vida e controlam os seus salários. Mas Mizoguchi mostra como tudo é mais complexo do que pode parecer. A opressão feminina não existe apenas na prostituição e, por vezes, pode quase parecer mais forte fora dela. Para Mickey a sua profissão é sinónimo de independência do pai rico que mascara uma vida de excessos hedonistas com uma imagem pública sem mácula que é mais falsa que a sua. Hanae sustenta a família com o seu trabalho e aguenta o seu destino sem pensar em desistir. Yorie percebe que ao menos como prostituta ganha o seu próprio salário e não é serva de um marido que a quer a trabalhar de borla para ele. Yumeko emerge como uma sacrificial figura materna, que enlouquece quando perde o filho. Até Yasumi, que impiedosamente esmifra clientes e colegas, emerge como uma peculiar self-made woman. Mizoguchi não nega agência às suas mulheres. Estas podem estar condenadas pela sociedade injusta em que vivem mas todas lutam por criar um lugar, para si e/ou para os seus, que seja de vida e não de morte. Uma vida melhor.
Numa época de transição, como o era o Japão de meados dos anos 1950s em que este filme foi feito, recentemente saído do período de ocupação americana mas sentindo ainda efeitos da influência dos EUA – perceptíveis em grandes questões como na discussão de ilegalizar a prostituição e em passagens mais subtis como Mickey dizer que vai ver um filme de Marilyn Monroe – qual é o lugar das mulheres? Mizoguchi questiona as possibilidades da sua efectiva libertação, mostrando como eram condicionadas em todos os caminhos. A iniciação da jovem criada, uma adolescente ainda virgem, no mundo das senhoras da noite, é um terrífico final. Como se o seu medo e incerteza, expressos nos seus gestos hesitantes, na lágrima furtiva e no seu esconder atrás da porta que fecha o filme – e veio a fechar a obra de Mizoguchi – simbolizasse a dúvida e o horror de todo um destino feminino, incapaz de escapar aos ciclos de opressão. Mas tentando sempre, à sua maneira.
Akasen chitai passa amanhã, dia 7, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, às 21h30.