Entre hoje (dia 24 de Abril) e dia 4 de Maio, realizações mais ou menos independentes mostram os seus novíssimos trabalhos, entre a Culturgest, o S. Jorge, o Campo Pequeno e a Cinemateca Portuguesa. Como o leitor pode reparar, parece que em cada ano que passa há sempre uma sala de cinema que já não volta a ser ocupada pelo festival. Neste ano desaparece o Londres, nos anos anteriores foram o King e o Fórum Lisboa, tornando-se assim o advento do Indie, e os seus espaços, num lembrete da ruína em que se tem vindo a tornar o cinema em Portugal. Os espaços mudam, mas as pessoas, essas, mantêm-se de pedra e cal naquele lugar infinitamente plástico e habitável: o cinema. O À pala de Walsh não é excepção e, nesta edição, não estamos com meias medidas. Para além de Ricardo Vieira Lisboa, que é programador do festival, eu e Francisco Valente (mais o amigo Pedro Miguel Fernandes do Shup Up and Watch the Movies) seremos júri do prémio dos Blogues de Cinema, referente às longas-metragens da competição internacional do festival (sobre a qual, por essa razão, não me irei pronunciar aqui). Esta nova distinção vem promover a crítica de cinema on-line a um novo patamar de responsabilidade e prestígio. Para além disso, Carlos Natálio irá apresentar algumas das sessões deste festival, por onde se moverá, no backstage inclusivamente, a nossa fotógrafa de serviço, Mariana Castro. As suas fotografias serão publicadas aqui e, ao longo do festival, na nossa página do Facebook. Para além de tudo isto, Ricardo Gross e João Lameira chefiarão a nossa cobertura crítica ao festival. Não restam dúvidas de que este é o sítio certo para acompanhar o IndieLisboa 2014.
Tendo como mote a liberdade autoral, este IndieLisboa volta a espicaçar-me o interesse, em primeiro lugar por nele se celebrar de novo a dependência de todos os dias: a do grande cinema. Independentemente da maior ou menor liberdade do cineasta, paro em primeiro lugar na programação Indie na Cinemateca Portuguesa, secção Director’s Cut, onde os realizadores são as estrelas principais. Equipe-se a rigor e pegue no cachecol para apoiar a projecção de Double Play: James Benning and Richard Linklater (2013), de Gabe Klinger, documentário co-produzido pela portuguesa Bando à Parte, que promove um encontro improvável entre Richard Linklater e James Benning, dois cineastas convergidos na amizade em torno do e no amor pelo baseball. Outro apetitoso documentário sobre um cineasta será Mr leos caraX (2014) de Tessa Louise-Salomé, que promete lançar uma nova luz sobre o modus faciendi do excêntrico autor de Holy Motors (2012) e do seu actor-fetiche: Denis Lavant. Em jeito de aplicação da matéria dada, a Cinemateca passa Mauvais sang (Má Raça, 1986). Outro amante de experiências e radicais metamorfoses do corpo, Boris Karloff é a estrela in memoriam no documentário A Masque of Madness (2013), da série de filmes Notes on Film de Norbert Pfaffenbichler. O mítico actor inglês incarnará, noutra sessão, a criatura do Dr. Frankenstein, na obra-prima intemporal de James Whale.
Refazendo uma certa genealogia do cinema moderno, o IndieLisboa não dispensa os grandes mestres desta sua programação “só para cinéfilos”. Trespassing Bergman (2013) abre as portas da casa de Ingmar Bergman na “esquecida” ilha de Fårö e recolhe uma grande variedade de testemunhos, de Claire Denis a Wes Anderson. Ansiktet (O Rosto, 1958) é o filme que complementa o complemento de luxo. Rosso cenere (Red Ashes, 2013), co-realizado por um dos maiores pensadores do cinema italiano, Adriano Aprà, é um valioso making of que reconstitui os passos que Ingrid Bergman e Roberto Rossellini deram, unidos por uma história de amor que extravasa a vida (= que invade o cinema), na violentíssima subida ao monte vulcânico de Stromboli, no filme com o mesmo nome que mudou a face do cinema e está previsto vir a iluminar a sua na Cinemateca. Bertolucci on Bertolucci (2013), co-realizado por Luca Guadagnino [Io sono l’amore (Eu Sou o Amor, 2009)], homenageia o autor de Il conformista (O Conformista, 1970) e, filme que será projectado, Prima della rivoluzione (Antes da Revolução, 1964). Posto isto, a reposição mais aguardada é, claramente, a projecção em 3D de Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954), um dos mais cortantes e irónicos thrillers de Alfred Hitchcock que, manipulando o efeito estereoscópico, promete ainda mais agudas facadas (ou tesouradas) na espinha. A experiência 3D não se fica por aqui: o IndieLisboa 2014 dá a ver, ainda, 3x3D (2013), filme colectivo de Edgar Pêra, Peter Greenaway e, o motivo do nosso entusiasmo, Jean-Luc Godard. Já sabe: ponha os óculos e guarde a pala.
Agora que já está assegurado o melhor tratamento possível a todas as mais severas dependências cinéfilas, podemos descer ao que faz do IndieLisboa um festival debruçado sobre o futuro; logo, permeável ao risco. Vou continuar a ser conservador e, do sempre irresistível Observatório, quero já reservar o meu lugar na sessão de Nogu-ui ttal-do anin Haewon (Nobody’s Daughter Haewon, 2013), o filme do sul-coreano Hong Sang-soo que se segue àquele que o À pala de Walsh elegeu como o melhor filme estreado em Portugal no ano passado, Da-reun na-ra-e-seo (Noutro País, 2012). Haewon é uma estudante de cinema que procura esconder num amor reacendido por um professor a tristeza pela partida da querida mãe para o Canadá. Espera-se de Hong Sang-soo uma visão leve e gentil que nos conduz, pelos zooms da sua câmara despretensiosa, aos microssismos da vida. Quem também tem trabalhado na reabilitação de um cinema “sem escândalo” sobre as relações amorosas é o prolífico cineasta norte-americano, demasiado desconhecido em Portugal, Joe Swanberg. Drinking Buddies (2013), com Olivia Wilde e Jake Johnson nos principais papéis, promete infundir o festival com o mais autêntico espírito indie. O mesmo espírito poderia ser personificado por David Gordon Green e o seu Joe (2013), interpretado por Nicolas Cage, mas este cineasta que começou a carreira a filmar pequenas obras intimistas [como George Washington (2000)] tem dado poucas razões para grandes entusiasmos nos últimos anos (como escreve aqui Ricardo Vieira Lisboa), durante os quais se pôs ao serviço da indústria “bromântica” do gangue liderado por Judd Apatow.
Man Tam (Blind Detective, 2013) marca o regresso do ex-Herói Independente Johnnie To e tem tudo para ser a sensação cult do festival. A história de um detective cego dono de uma intuição mais afiada que a de Sherlock Holmes e uma capacidade de reacção digna de Zatoichi promete acrescentar à filmografia de To mais um grande filme de acção conceptual. Descendo à realidade mais dura, teremos Abus de faiblesse (2013) de Catherine Breillat, filme baseado num episódio doloroso na vida da realizadora, esta que, após ter ficado parcialmente paralisada devido a um derrame cerebral, foi objecto de uma relação massacrante com um dos seus actores. Espera-se um cinema do corpo que enregele a loucura delirante do aguardado filme performativo de To. Outro país, outra época e outro jogo são postos em cena entre o cineasta romeno Corneliu Porumboiu [Politist, adjectiv (Police, Adjective, 2009)] e o seu pai, ex-árbrito de futebol que apitou um “quentíssimo” clássico, onde a bola rolou em relvado polvilhado pela neve que não parava de cair, entre o Dinamo e o Steaua de Bucareste, encontro realizado um ano antes da derrocada do regime de Ceausescu. Al doilea joc (The Second Game, 2014) põe pai e filho em frente ao televisor, apelando à sua capacidade de comentar uma partida de futebol que não foi apenas jogada dentro das quatro linhas. Mas agora voemos até ao país-rei do futebol para ouvir estas palavras de Áurea: “Hoje, o obsceno é a sensibilidade”. Despertaram-me toda a atenção as imagens e as frases que se dizem ou sussurram no trailer de Educação Sentimental (2013), novo filme do histórico cineasta brasileiro Júlio Bressane (que já foi Herói Independente). Este filme – como, porventura, toda a obra de Bressane – deverá resistir mal à mera sinopse, mas o que parece que nele se conta é a história mito-poética de um amor improvável entre Áurea, uma professora apaixonada pelas palavras e o pensamento, e Áureo, nos antípodas, um rapaz… cuja sensibilidade é o obsceno. Aventura fílmica no horizonte.
“Quem te avisa teu amigo é”, diz o povo. Pois bem, nas secções Cinema Emergente e Novíssimos os meus colegas walshianos dizem-me para pôr “as minhas fichas” em filmes como: o thriller – lê-se no trailer – “hitchcockiano” Blue Ruin (2013), vencedor do prémio FIPRESCI da última edição de Cannes; a comédia desbocada sobre uma stand-up comedian de coração destroçado Obvious Child (2014); o drama chileno sobre uma transexual cartomante e uma mulher que sonha ser ou parecer-se com Naomi Campbell (2013); o documentário La marche à suivre (2014), sobre problemáticos estudantes numa escola secundária canadiana; e o recentíssimo filme de Denis Côté, que há um mês estreou nas nossas salas Vic + Flo ont vu un ours (Vic + Flo Viram Um Urso, 2013), sobre o movimento do corpo humano e da máquina industrial e que tem como título Que ta joie demeure (2014). Nas curtas-metragens, sugiro as sessões onde passam Assemblée générale (2013), garantido momento alto de comédia por Luc Moullet em torno de uma reunião de condóminos, e O umbra de nor (Shadow of a Cloud, 2013), de um habitué no IndieLisboa, o romeno Radu Jude, autor de um dos melhores filmes que já passaram no festival, Toata lumea din familia nostra (Everybody in Our Family, 2012). Estes são os dois títulos que, à superfície, mais me chamam à atenção, mas, desfazendo o conservadorismo, não contenho a curiosidade relativamente a duas curtas, por sinal, realizadas por duas mulheres: Jerry & Me (2013), filme em que a cineasta e professora universitária Mernaz Saeed-Vafa fala sobre a influência dos filmes de Jerry Lewis na sua vida, e Mille soleils (2013), de Mati Diop, a actriz que incarnou Josephine em 35 rhums (35 Shots de Rum, 2008) de Claire Denis e que aqui, em pouco mais de 40 minutos, nos mostra a sua viagem à terra-mãe, o Senegal, onde, entre outras coisas, se reencontra com as imagens de um filme de culto protagonizado pelo seu tio.
Se por um lado não quer camuflar a crise, por outro lado o IndieLisboa quer dizer alto e bom som que o cinema português tem um futuro à sua frente que importa, desde já, saber cuidar. Mas, “antes dele”, há Centro Histórico (2012), filme que reúne os dois nomes cimeiros, históricos e centrais, do cinema português, Pedro Costa e Manoel de Oliveira, em duas curtas-metragens que lidam com a memória e a história do nosso país, sendo que Sweet Exorcist, “continuação” de Juventude em Marcha (2006) e da pouco vista obra-prima O nosso Homem (2010), tem a capacidade de literalmente petrificar o símbolo deste Abril que todos celebramos – será dos filmes mais discutidos no festival, estou certo. E Agora? Lembra-me (2013) foi o filme português que conquistou o mundo no ano passado, mas que lamentavelmente tarda em estrear-se nas nossas salas. Enquanto isso não acontece, há-que desentupir os ouvidos e a alma e deixar entrar a voz de Luís Miguel Cintra lendo O Novo Testamento de Jesus Cristo Segundo João (2014), filme pascoal realizado pelo casal Joaquim Pinto e Nuno Leonel. Agora sim, de uma geração (bem) mais nova abrindo horizontes, antevejo experiências desafiantes sobre o medium cinematográfico/fotográfico, na sua relação com o tempo e a memória, nas curtas-metragens de Sílvia das Fadas [Square Dance, Los Angeles County, California, 2013 (2013)] e de Joana Pimenta [As Figuras Gravadas na Faca com a Seiva das Bananeiras (2014)]. Atenção a elas. Já com a chancela do próximo festival de Cannes, poderemos ver no IndieLisboa Boa Noite Cinderela (2014) de Carlos Conceição, seleccionado para a Semaine de la Critique, e A Caça Revoluções (2014) de Margarida Rêgo, escolhido para integrar a muito selecta Quinzaine des Réalisateurs.
Vamos, então, ao IndieLisboa para celebrar não as decisões independentes, como se propõe no próprio cartaz, mas essa nossa esplendorosa dependência cinéfila do cinema: do bom, do mau e do assim-assim. Ninguém fica excluído, nem mesmo os futuros leitores desapontados com os títulos que aqui sugiro. Com efeito, tenho uma vantagem junto do leitor mais empedernidamente cinéfilo: para ele, grande idiota (?!), o cinema é sempre uma aposta ganha.
Consulte o calendário de exibições destes e dos restantes filmes IndieLisboa 2014 no site oficial do evento ou directamente neste link (PDF do programa).