Parece que no próximo dia 1 de Maio irá estrear em Portugal um filme de Mahamat-Saleh Haroun [Grigris (2013)], realizador do Chade, que será dos poucos cineastas de África com algum cartel internacional nos dias de hoje, isto, claro, se não nos esquecermos do sul-africano Neil Blomkamp, jovem muito promissor que já nos brindou com dois portentos de “cinema africano”, com as suas angústias, problemas e derivados. Um bom pretexto para se escrever qualquer coisa sobre “o melhor filme africano de todos os tempos”, seja lá o que isso queira significar. Nem é tarde nem é cedo.
Souleymane Cissé forma com Ousmane Sembène e Idrissa Ouedraogo o trio de realizadores mais famosos do continente africano (ou da África negra, já que ainda há o Chahine e o maravilhoso Blomkamp. Também se poderia juntar o tunisino Kechiche, mas é melhor não nos metermos em alhada das grossas). Nascido no Mali em 1940, desandou dos seus aposentos uma vintena de anos depois, indo estudar o seu ofício cinematográfico para Moscovo, precisamente na mesma altura em que “pai” Sembène e outros mostravam ao mundo uma África longe das imposturas artificiais dos Tarzans, das Africans Queens e demais amostras de “vamos mostrar a Mãe África tão exótica, tão linda”. Havia poeira, pobreza, casas a cair e uma férrea vontade de fazer do cinema arma de arremesso contra milhentos anos de subjugação.
Cissé regressou ao seu país na década de setenta, e começou a dar uso das boas práticas apreendidas nas neves moscovitas, realizando pequenos documentários e grandes curtas-metragens. Para as longas seria um pequeno passo, com algum reconhecimento festivaleiro pelo meio, não sabemos se por justeza se por compaixão exótica por “veja bem, estas pessoas também sabem fazer filmes! Que delícia!”; assim tipo o mesmo espanto de quando vemos uma actriz porno a escrever um livro, admirados que ficamos pela menina conseguir juntar três palavras sem se engasgar. A consagração “planetária”, contudo, só surgiria em 1987, numa obra de contornos cósmicos.
Yeelen (A Luz, 1987) poderá, para os mais incautos, ser parte integrante do famigerado “realismo mágico” (Jesus Senhor), e poder-se-á acrescentar que tais espíritos têm toda a razão. É um filme onde o mais depurado documentário se junta alegre e harmoniosamente com imagens e paisagens de grande “magia” (literalmente) e de fortes sabores místicos, ou não estivéssemos no Mali do século XIII e onde um pai feiticeiro anda atrás do seu filho mágico, apenas provido de um grande tronco mágico carregado por criados, que certamente também seriam mágicos. Fantasia, lendas de tradições orais viajadas pelos séculos, antropologia em movimento. Com um tronco. Mágico.
Cissé sabe que palavras como “poesia” e “lirismo” aplicadas ao cinema podem resultar em grande catástrofe, e por isso, não as ignorando, vai cortando-lhes o efeito com seca violência. Os primeiros minutos de Yeelen começam com o nascer do Sol, e se soubéssemos que tal significou uma private joke para os admiradores de cartões postais, ficaríamos felizes. Mas logo a seguir, rompendo o silêncio matinal e os tons laranja, irrompe, num raccord implacável, uma galinha em fogo e uns acordes musicais que nem sabemos como classificar. Volta-se ao Sol, os estranhos acordes cessam, e surgem as “banais” maravilhas do som ambiente africano, com mil pássaros e folhas nas suas rotinas. E sucessivamente, fogo e galinha no espeto. Souleymane a fugir dos fáceis encaixes e nós agradecidos.
Depois de Yeelen, Cissé só fez mais dois filmes, sendo actualmente presidente da UCECAO (Union of Creators and Entrepreneurs of Cinema and Audiovisual Arts of Western Africa). Em 2003, numa entrevista, afirmou que “our [african] cinema is currently going to the dogs”. Felizmente que dez anos depois temos aí o Blomkamp para desmistificar as malvadas palavras catastrofistas do senhor Cissé. O cinema é da juventude.
http://www.youtube.com/watch?v=bU7HMJV4eio