Na segunda metade dos anos 30, talvez por alturas de Seventh Heaven (A Hora Suprema, 1937), remake da obra-prima homónima de Frank Borzage, Henry King recebeu um telegrama de Darryl F. Zanuck a pedir-lhe que realizasse Heidi (Heidi, 1937) – que acabou por chegar às mãos de Allan Dwan -, mas King respondeu (as duas citações seguintes vêm da entrevista a King presente no catálogo da Cinemateca dedicado ao cineasta) “que não me interessavam contos de fadas e que queria fazer In Old Chicago (O Incêndio de Chicago, 1938). Ele (Zanuck) respondeu-me: ‘Não podemos fazê-lo. Nem Gable nem Harlow estão livres’. Eu disse-lhe: ‘Não há problema. Temos todos os personagens à mão, aqui na Fox. No papel de Dion vejo Tyrone Power.’ Zanuck chamou-me doido mas uma semana mais tarde tivemos uma reunião no seu escritório com Kenneth McGowan e Lamar Trotti. ‘Meus senhores’, disse ele, ‘há uma semana, Henry King comunicou-me uma ideia insensata, mas, quanto mais penso nela, mais lhe dou razão: vamos fazer In Old Chicago com Tyrone Power’. Em seguida foi Jean Harlow quem adoeceu e decidi dar a grande oportunidade a Alice Faye, actriz que Zanuck não acreditava capaz para o papel. Mas um ensaio convenceu-o e o filme foi um triunfo”.
A esses dois actores, juntou-se Don Ameche. E esse trio de actores foi também o do filme imediatamente posterior (na obra de King) a In Old Chicago, Alexander’s Ragtime Band (Sinfonias Modernas, 1938). Foi triunfo ainda maior. King trabalhou com os três, mas não juntos, noutros filmes; com Alice Faye em Little Old New York (O Despertar de Uma Cidade, 1940), no qual não é impossível imaginar Power e Ameche nos papéis de Fred MacMurray e Richard Greene, respectivamente; com Ameche em Ramona (Ramona, 1936), belíssima história de amor entre um índio e uma rapariga mestiça e das injúrias e ataques que sofrem pelas mãos da lei e da ordem, tudo pintado pelas três camadas de um Technicolor pioneiro mas já maturo e imaculado (“Ramona In The New Perfected Technicolor“, dizia o cartaz do filme). Foi no final das rodagens de Ramona, quando estava no escritório, a preparar Lloyd’s of London (Lloyd’s de Londres, 1937) e a pensar em Don Ameche para o papel principal, que “(…) entrou um jovem, muito belo e de extraordinária elegância. Disse-me que se chamava Tyrone Power e que tivera já alguns pequenos papéis no cinema. Propus-lhe fazer um ensaio. Acabara de fazer um com Don Ameche que era um excelente actor mas, na minha opinião, era mais um jovem actor de composição que um verdadeiro actor de primeiro plano. Aos seus gestos, em particular, faltava agilidade. Tinha uma elegância um pouco rígida. Repare que toda a gente estava satisfeita com o ensaio de Don Ameche, incluindo eu. Zanuck estava mesmo encantado por termos encontrado o herói ao primeiro ensaio. Disse-lhe que, mesmo assim, queria fazer um ensaio com outro actor. Zanuck ficou um pouco espantado, mas aceitou”.
“É preciso dizer que filmar um ensaio representava um enorme trabalho tanto para o actor como para o realizador. Dera já um argumento a Tyrone Power para ele trabalhar. Fiz com ele o mesmo ensaio que fizera com Don Ameche. No dia da projecção todas as pessoas presentes votaram em Don Ameche. Tinham um preconceito contra Tyrone Power porque recentemente um realizador despedira-o de um filme. Zanuck preferia também Don Ameche, e pediu-me a opinião. Respondi-lhe que achava Power melhor. Zanuck perguntou-me porquê. ‘Porque este rapaz é bonito, romântico, bom actor e dentro de dois anos será a jovem vedeta mais célebre de Hollywood. E Deus sabe como a Fox neste momento precisa de todos os novos talentos que pudermos encontrar!’. ‘De acordo, agarra-o já antes que eu mude de ideias’, respondeu Zanuck“.
“Ora descobriu-se que Power estava já sob contrato com o estúdio mas que ninguém se lembrara! Uma semana depois do começo da rodagem, Zanuck chamou-me ao seu escritório: ‘Vi todos os dias os rushes com cuidado. Tem razão, esse rapaz será em breve uma vedeta. Para que seja perfeito dou-lhe mais 15.000 dólares. Filme o número de tomadas de vista que quiser. Tem corrido tudo bem até hoje e quero que assim continue. Não quero que fique limitado nem pelo tempo nem pelo dinheiro’. O filme foi um triunfo e lançou Tyrone Power.” E lançado Tyrone Power, começa uma das grandes e prolíficas colaborações dessa Hollywood desaparecida. Depois de Lloyd’s of London, vêm os já citados In Old Chicago (e a esse já voltarei) e Alexander’s Ragtime Band, Jesse James (Justiça de Jesse James, 1939), A Yank in the R.A.F. (Uma Americano na Aviação, 1941), The Black Swan (O Pirata Negro, 1942), Captain from Castille (O Capitão de Castela, 1947), Prince of Foxes (O Favorito dos Bórgias, 1949), King of the Khyber Rifles (A Carga dos Fuzileiros, 1953), Untamed (Enquanto Dura a Tormenta, 1955) e The Sun Also Rises (O Sol Também Brilha, 1957). Onze filmes, portanto. William Russell (também 11 filmes), H. B. Warner (7 filmes), Gregory Peck (6 filmes), Richard Barthelmess (5 filmes) e Ronald Colman (5 filmes) foram outros actores principais preferidos pelo realizador. E antes de voltar a Tyrone Power, umas palavras sobre três filmes com Gregory Peck (afinal, só se pode falar do que se vê): The Gunfighter (O Pistoleiro Romântico, 1950), único western de King, e em que Johnny Ringo, mais que mitológico, é um ser amaldiçoado, preso à fama e a um saloon durante todo o filme, para tentar evitar, em vão, que um “hungry kid trying to make a name for himself” o mate à traição. “Well, the marshal, now he beat that kid to a bloody pulp / as the dying gunfighter lay in the sun and gasped for his last breath / ‘Turn him loose, let him go, let him say he outdrew me fair and square / I want him to feel what it’s like to every moment face his death'” (como escrevem Bob Dylan e Sam Shepard em Brownsville Girl). David and Bathsheba (David e Batsabé, 1951) e The Bravados (Vingador Sem Piedade, 1958) são peças tão absolutamente demenciais, nocturnas e fugidias que para elas nem arrisco palavras. “Oh, if there’s an original thought out there, I could use it right now”.
Tyrone Power, então. Entre o que vi, guardei Jesse James, a aridez, a brutalidade do retrato dessas duas últimas décadas do século XIX e os editoriais da personagem de Henry Hull, com uma perseguição nos bosques encenada e montada da tal maneira de que só alguns conhecem o segredo; Captain from Castille, Jean Peters e as questões eternas, os exteriores de Michoacán e os céus e as nuvens de King, os traumas de Espanha e os crimes no Novo Mundo, as conversas entre o Pedro de Vargas de Power e o padre Bartolomeu de Olmedo de Thomas Gomez, culminando na certeza, entre sombras e luzes milenares, de que aos maiores pecados, cabe o maior perdão; Prince of Foxes, os círculos do Inferno presididos pelo Bórgia diabólico de Orson Welles e o amor da Camila di la Baglione de Wanda Hendrix pelo Andrea Zoppo (tornado Andrea Orsini) vassalo dos Bórgias de Power; The Sun Also Rises e as cinco almas penadas e perdidas que gravitam em torno do planeta Ava Gardner, aqui talvez a mais penada e perdida de todas as almas; e, claro, In Old Chicago.
Sempre a descrição e o enquadramento de tempos instáveis, em King. Antes da estabilidade chegar, mas não sem que uma enorme nuvem negra se instale e uma bíblica tormenta tudo e todos tente varrer. A tempestade antes da bonança. Neste caso, é a construção e a evolução de uma cidade: Chicago. Para lá vai uma família à procura de melhor sorte e numa cavalgada louca a tentar ultrapassar uma locomotiva mas acabando por fazer soltar os cavalos da carroça, perdem pai e marido. É esse pai e esse marido que não morrerá nem em memórias nem em promessas e que, num último esforço, antes de morrer, diz, quase às portas da cidade, “No, just bury me here, and let Chicago come to me… I couldn’t come to it”. E ela a ele chegará, em crescimento feroz e acompanhada de perto pelos O’Learys, como ele tinha profetizado. Depois do enterro velado pela árvore e pelas nuvens, depois dos miúdos ajudarem mulheres da má fama a sair da carroça, já em Chicago, por cima duma poça de lama, e deixarem cair a última, ao ver a mãe aparecer, e esta dizer a essa que consegue lavar o vestido sujo dela em três tempos. A espuma vai amontoando já nos baldes do negócio de lavandaria da mãe O’Leary e, em três tempos também, os anos passam. Chicago deve triplicar ou quadriplicar desde essa altura. Com ela, os bares e os negócios da Patch, a que Dion O’Leary (Tyrone Power) cedo se junta, prosperam, e os donos compram eleições, sentenças e chefes da polícia. A cidade é deles e Dion chega a casa sempre cheio de dinheiro, recebido com críticas e insultos da mãe, logo esquecidos e curados com carinhos e brincadeiras do filho. O outro, Jack O’ Leary (Don Ameche), cedo se demarca da Patch, mas chega a casa de bolsos furados, para tristeza da mãe. Num jantar preparado para Dion dizer que quer apresentar Belle (Alice Faye) à mãe, com concertos e danças da Irlanda natal à mistura, a senhora Molly O’Leary recusa a apresentação, dizendo que não se quer dar com ralé. Os filhos dizem-lhe que os tempos mudaram mas ela remata a conversa toda com o “Well, times may have changed, but I haven’t changed”. É o que diz Billy the Kid a Pat Garret quando o último o encontra num saloon e lhe diz que desapareça, no filme de Peckinpah.
Se pensei em Sam Peckinpah a propósito de In Old Chicago (além de Scorsese, na sequência final) foi por ter lido um texto completíssimo de Miguel Marías há pouco tempo sobre Pat Garret & Billy the Kid (Duelo na Poeira, 1973), em que escreve sobre Garret e Billy, mas podia estar a escrever sobre Jack e Dion: “encurralados pelo tempo ou pela sociedade. Começam a compreender que a história não se detém: ambos pensam já em retirar-se, em tentar o último golpe, em mudar de vida. Mas, por força das circunstâncias, ou pelo seu próprio carácter, ou pela sua própria experiência, um deles foi mais rápido a mudar, deixou-se levar pela corrente dos novos tempos oferecendo menos resistência”. Se, para o filme de Peckinpah, Garret é quem força a mudança, no de King as coisas invertem-se e é o menos rápido a deixar-se levar pela corrente dos tempos quem permite a mudança (Dion, ao avisar o irmão que os bandos da Patch o vêm matar e permitir que a dinamite se accione). Guiados pela promessa dada ao pai, a de prosperar e crescer com a cidade como ele o estava a tentar ir fazer, os miúdos, depois homens, só muito tarde se apercebem do que essa prosperidade lhes faz a eles como irmãos. E se vão marcando posições e afastando-se um do outro ao longo do filme, é só quando Dion casa com Belle para se livrar de futuras acusações e chega aquela carga de porrada no escritório da câmara municipal, que as marcações e as posições se estabelecem a ferro e fogo. E é no máximo desentendimento que começa a máxima desolação.
De forma totalmente arbitrária, mas perfeitamente fatídica, a Chicago das corrupções e do dinheiro fácil, Pompeia ou Sodoma e Gomorra desse século dezanove, é assolada por um grande incêncio. E quando ele começa e os silvos e clamores de alarmes também começam e nunca mais param, começa uma das mais extraordinárias sequências construída por Henry King. Multidões em movimento, desespero em massa. Já o fizera em The Winning of Barbara Worth (A Flor do Deserto, 1926), que é de construção semelhante. É lugar para as mais poéticas névoas e para as mais sentidas reconciliações, quando tudo acaba e as cinzas se levantam. São a aridez e a abstracção de Jesse James e Captain from Castile, de novo, e a brutalidade que nasce do confronto disso com as linhas demarcadas da encenação de King. As carroças que mais uma vez se soltam dos cavalos, os desencontros, a Patch em peso a atravessar as linhas policiais, os retratos perdidos e encontrados, as pazes com a ralé, a água do rio, as deambulações desesperadas e sonâmbulas de Dion, os monólogos finais velados mais uma vez pelas nuvens, que só no início se viram e só agora se voltaram a ver. Um dos cumes da montagem paralela, se por cumes entendermos a capacidade de fazer doer. Que é um corte se não nos atravessa a alma? Só um corte.
E por contar ficam os encontros de Dion com Belle no apartamento desta, quando ela grita por socorro mas sem saber se levantar ou baixar a guarda e a empregada chama a polícia apenas para voltar com um agente e os encontrarem aos beijos. E ficam por contar as entradas em bares do homem que só neles entra para ser expulso. “It won’t take five minutes”. E fica por contar tanta, mas tanta, coisa…