Primeiras cápsulas IndieLisboa 2014 dominadas pela Competição Internacional, da autoria de João Lameira (JL) e Luís Mendonça (LM). Boas sessões!
Gare du Nord (2013) de Claire Simon
Gare du Nord sofre de um problema de raiz epistemológica: um filme que de tão próximo que quer estar do objecto da sua tese acaba por se confundir por completo com ele. Compramos bilhete para a historieta de uma mulher na casa dos sessenta anos, abatida pelo ocaso da idade, que encontra no amor por um estudante de sociologia a escada rolante rumo a uma “segunda juventude”. O cenário é a Gare du Nord, mítica estação parisiense que é o objecto da tese de doutoramento do protagonista. É aqui que Claire Simon perde o comboio: se no início a sua câmara procura a ilustração simplista da teorização daquele espaço como uma “aldeia global”, depois, perdido entre distractivas micro-narrativas, Gare du Nord passa a mastigar e a assimilar ad nauseam a constatação da própria dimensão fantasmática daquele não-lugar. O filme plasma estas ideias ao ponto de se tornar, ele mesmo, num passageiro não-filme com não-personagens, que protagonizam tempos mortos de espera mal disfarçados por divagações filosóficas arrastadas por uma sucessão de enxaquecas existenciais. No fim, fica a sensação de que Claire Simon, comprometendo a necessária distância crítica sobre o seu objecto, se deixa perder de tal maneira nele que o próprio espaço da Gare du Nord fica esquecido ante a urgência de debitar teses de algibeira e capitalizar uma sentimentalidade frouxa (e burguesa) para mulheres de meia idade. Filme “da mamã” sem qualquer rasgo que teve honras de abertura do IndieLisboa 2014. (LM)
Gare du Nord (Herói Independente) será reexibido dia 1 de Maio (quinta-feira), às 15h00, no Cinema São Jorge.
Los Ángeles (2014) de Damian John Harper
A cidade que dá o título ao filme é apenas uma miragem, a terra das oportunidades de trabalho para estes aldeões mexicanos que sonham prover o sustento para toda a família. É também a terra dos gangsters, que providenciam uma sensação de segurança aquém e além fronteira e trazem para a pequena aldeia métodos e costumes que os anciães reprovam mas não têm força para impedir. Mateo, o jovem protagonista, está exemplarmente entre estes dois mundos, prestando-se às duras provas para poder entrar no gang, enquanto tenta manter a pureza, representada naquele primeiro amor. É uma história local (ou melhor, são histórias, pois há também o enredo da mãe que desespera pelo filho que caiu em desgraça no gang a que pertencia em LA) contada por um estrangeiro. O realizador Damian John Harper é norte-americano e etnólogo, o que em sua honra mal se sente (talvez no uso de actores amadores, o que está longe de ser um exclusivo de etnólogos norte-americanos), tal como nunca surge a ideia de que estará a fazer qualquer tipo de turismo audiovisual. De resto, filma esta história simples e familiar, de sacrifício e honra, numa rigorosíssima câmara à mão (que contraria a noção de que o rigor só reside nos planos estáticos). (JL)
Los Ángeles (Competição Internacional) será exibido dia 25 de Abril (sexta-feira), às 21h30, na Culturgest; e no dia 27 de Abril (domingo), às 19h00, no Cinema City Classic Alvalade.
Revolução Industrial (2014) de Tiago Hespanha e Frederico Lobo
O documentário de Tiago Hespanha e Frederico Lobo sobre a indústria no Vale do Ave começa com fotografias centenárias da altura da revolução industrial do título, no entanto, o que interessa à dupla de realizadores, o que a sua câmara busca, são as fábricas a cair aos bocados, entregues a fantasmas e a jovens skaters, e as histórias de quem lá trabalhou (e ainda lhe devem dinheiro e quis explodir com aquilo tudo e…) contadas pelo narrador. Nesse aspecto, Revolução Industrial lembra Ruínas (2009) de Manuel Mozos, que também se enamorava pela decrepitude e pelos espectros que assombram edifícios decadentes. Contudo, Hespanha e Lobo procuram fazer também um contraponto entre natureza e civilização ou mostrar como, à vez, uma vai tomando conta da outra. Na única fábrica que encontram de pé, dão de caras com uma imagem paradigmática: no meio do escritório, umas plantas (porventura, artificiais). Depois, há o serpenteante rio Ave, que clama vidas (e foi baleado pelo irmão de uma das vítimas) e parece levar a um qualquer coração das trevas. (JL)
Revolução Industrial (Competição Nacional e Cinema Emergente) será exibido dia 25 de Abril (sexta-feira), às 18h00, na Culturgest; e no dia 27 de Abril (domingo) no mesmo cinema.
Mouton (2013) de Gilles Deroo e Marianne Pistone
A “naturalidade” da câmara, que como que sonda a “realidade” em busca de qualquer coisa, estabelece desde cedo a dúvida: Mouton é documentário ou ficção? E, embora a mesma acabe por se desfazer, o filme de Gilles Deroo e Marianne Pistone nunca deixa de viver no limbo entre os dois. Aliás, retira daí a sua maior qualidade: o enredo tem a indefinição e aleatoridade da “vida real” e chega ao ponto de perder o protagonista (um sósia do jogador do Benfica Nico Gaitán a quem chamam ovelha) a meio, num incidente completamente a despropósito, qual Psycho (Psico, 1960) naturalista. Mouton é uma experiência interessante, em que o espectador pouco sabe ou percebe do que se vai passando (a exposition é quase inexistente), um pouco como se estivesse à janela ou numa esplanada a assistir a pequenas fatias de vidas que não lhe dizem respeito. Um voyeur hitchcockiano no filme menos hitchcockiano de todos. Perdoe-se a este espectador ter marcado alguns golos de cabeça enquanto o via (e por fazer metáforas futebolísticas), a culpa será certamente do próprio, visto que outros gostaram muito desta obra. (JL)
Mouton (Competição Internacional) será exibido dia 26 de Abril (sábado), às 16h00, no Cinema São Jorge; e no dia 28 de Abril (segunda-feira), às 18h45, no mesmo cinema.
Je m’appelle Hmmm… (2013) de Agnès B.
Agnès B. (née Troublé) é uma famosa estilista e galerista francesa, também conhecida pelo interesse pelo cinema, tendo apoiado financeiramente filmes de cineastas mais ou menos malditos como Harmony Korine, Claire Denis e Gaspar Noé. Je m’appelle Hmmm… é segunda longa-metragem desta mulher de 73 anos (que na competição do Indie enfrenta concorrentes de 20 e 30 anos) e tem o fulgor das primeiras obras. A história, sobre uma miúda que é abusada sexualmente pelo pai e resolve fugir, é relativamente convencional, pese embora a presença do camionista escocês que a acolhe, interpretado pelo artista Douglas Gordon, co-realizador de Zidane, un portrait du 21e siècle (Zidane – Um Retrato do Século XX): o pai está desempregado e entristece-se (a preto-e-branco) por a fazer sofrer, a mãe trabalha demais e não repara, os irmãos são demasiadamente novos e ela só se confessa à Barbie que leva para todo o lado; o elemento road movie, que acaba por perfazer grande parte do filme, também não é propriamente original. Possivelmente, os truques visuais de Agnés B. – os freeze frames, a escrita na imagem, o super 8 a irromper no vídeo – seriam só curiosidades, não fosse a justeza do olhar da realizadora, que consegue escapar-se ao sentimentalismo (e ao sensacionalismo) sem fugir à tragédia que tem em mãos, atingindo o registo da fábula e do conto infantil com uma leveza muitíssimo louvável. (JL)
Je m’appelle Hmmm… (Competição Internacional) será exibido dia 26 de Abril (sábado), às 21h30, na Culturgest; e no dia 30 de Abril (quarta-feira), às 19h00, no Cinema Campo Pequeno.
Amor, Plástico e Barulho (2013) de Renata Pinheiro
No ano em que Som ao Redor (2012) esteve em competição no IndieLisboa, Renata Pinheiro apareceu com uma curta-metragem, Praça Walt Disney (2011), que considerei à altura o melhor complemento ao filme de Kleber Medonça Filho, pois tratava da mesma Cidade do Recife, apresentando o “lá fora”, enquanto Som ao Redor se ficava pelo “lá dentro” dos condomínios fechados. Em 2014, Renata Pinheiro volta ao Indie e ao Recife, com a sua primeira longa-metragem, Amor, Plástico e Barulho, uma versão brega de A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, 1954), com pitadas de All About Eve (Eva, 1950) [ou vice-versa], em que duas cantoras – uma mais velha, outra mais nova; uma morena, outra loura – se digladiam pelo foco das luzes da ribalta. Pinheiro traz do Musical norte-americano a qualidade onírica (em muitos momentos é impossível distinguir o sonho da realidade), as luzes, as cores (plástico e barulho) e a sensação de desilusão, dos sonhos vencidos que nem os finais felizes escondiam. Da música brega, traz (ou fica com) os fatos espampanantes, as mamas de silicone, a maquilhagem garrida, os programas da tarde onde se fazem e desfazem estrelas. É espantoso como Renata Pinheiro, e, por conseguinte, o espectador, nunca condescendem com as personagens, o que seria bastante fácil. Amor, Plástico e Barulho volta a deixar a ideia de que o melhor cinema brasileiro vem de Pernambuco. (JL)
Amor, Plástico e Barulho (Competição Internacional) será exibido dia 27 de Abril (domingo), às 21h30, na Culturgest; e no dia 28 de Abril (segunda-feira), às 21h30, no Cinema Campo Pequeno.