Foi já com a respeitável idade de 46 anos que Mario Bava arrancou para uma longa carreira na realização com a adaptação de Viy, um conto do russo Nikolai Gogol. Arrancou é como quem diz porque entretanto já havia tentado a realização quando substituiu Jacques Tourneur, que bateu com a porta a meio de La battaglia di Maratona (O Gigante da Maratona, 1959), e Riccardo Freda, que fez o mesmo com Caltiki – il mostro immortale no mesmo ano. Isto para não falar do seu trabalho enquanto assistente do pai, génio dos efeitos especiais, Eugenio Bava (o cinema é para a família um veículo de sangue e obra; Lamberto Bava, presente no ciclo que agora se inicia, começou também como assistente de Mario), e do seu extenso trabalho enquanto director de fotografia, com destaque para duas curtas de Rossellini. Por isso quando Bava faz este La maschera del demonio (A máscara do demónio, 1960) já tinha vinte anos de experiência no interior dessa “magician forge”, no interior dessa fábrica de resolução de problemas chamada cinema.
Há pelos menos duas razões para a tentação de se ser metonímico em relação a este primeiro filme. Diz-se, e com razão, que se há acto que define o cinema de Bava, ele está na primeira sequência de La maschera: no século XVII, na Moldávia, Ava é condenada pelo grande inquisidor, também seu irmão, à morte. Tem de pagar pelas vítimas que o seu amor por Javutich causou. “May God have pity on your soul”, diz-lhe o irmão. E depois dá a ordem: “cover her face with the mask of Satan”. A máscara de bronze, “the true face of the devil”, contém uns picos para se fixar à cara, para que o mal não saia. Sabe-se o que se segue, nem é preciso ver o filme, a máscara será pregada no atormentado rosto da irmã. Há até um plano da máscara a ser pregada e o sangue a saltar. Mas não é daí que vem a impressão, o “imprint” no rosto do espectador. Ele vem do plano anterior, do carrasco gordo (como diz Howard Hugues no seu “Mario Bava: Destination Terror”, os carrascos podiam muito bem ter saído de um peplum, e sabemos que Bava também andou por esse filone), suado, cara tapada, com o enorme martelo que irá martelar a máscara, e vem desses dois planos, “irmãos na desgraça”: o subjectivo da vítima, em que Ava, em que nós, vemos os picos avançar na nossa direcção e o subjectivo do carrasco que, carregando a máscara, se prepara para matar/penetrar o corpo de Ava. Foi portanto neste jogo de filmar a penetração que leva à morte, mas sobretudo nessa obrigatoriedade de quem vê os filmes de Bava ter de se deixar mascarar e sangrar profusamente, que está, simbolicamente, toda a força da “imagem-pulsão” com que Gilles Deleuze descrevia o cinema do realizador italiano. Jogo que o filme exibe no próprio duplo papel da “scream queen” dos anos 60, Barbara Steele, enquanto bruxa opressora Ava e vítima (e descendente) princesa Katja.
Simbolismos à parte – as máscaras são para quem as usa -, o certo é que tantos anos de experimentação até ali chegar fazem desta Maschera não o seu melhor filme [isso reservo para outro conto louco de diabos e máscaras, Lisa e il diavolo (1973), a que o João Palhares faz aqui a devida justiça], mas aquele a partir do qual podemos seguramente cartografar quase todas as obsessões e traços autorais (eles vêm sempre em par) de um realizador que juntamente com Dario Argento e Lucio Fulci, pelo menos estes, fez das décadas de 60 e 70 a época de ouro do terror italiano. Desde logo o gótico, vindo da literatura e pintura, do expressionismo alemão, foi um território de liberdade no qual veio a trabalhar frequentemente. Já falei do Lisa, mas há também esse duplo ou reverso a cores de Maschera – La frusta e il corpo (1963), centrado na omnipresença do defunto Kurt (Christopher Lee) e na sua relação masoquista com Nevenka. São mais que muitas as semelhanças: a família com uma maldição do passado; Katja e Nevenka ambas ao piano; o “chicote” da vegetação que atinge o cocheiro que leva os médicos à conferência é o falso chicote de Kurt que Nevenka vê pela janela do seu quarto; nos dois há uma cena de uma personagem mais velha a agonizar na cama [situações aliás recorrentes, como na terceira história de I tre volti della paura (Black Sabbath, 1963) – a condessa que se fina ao som da gota de água em La Goccia d’Acqua – ou a morte súbita da tia de Nora Davis em La ragazza che sapeva troppo (A Rapariga Que Sabia Demais, 1963)]; e claro, o final no fogo, um que implica o fim da bruxa e da maldição às mãos de um auto de fé dos aldeões [com eles carrega-se a aura dos filmes da Universal dos anos 30 e que, por exemplo, em Operazione paura (Kill Baby Kill, 1966), outro filme gótico, têm um papel preponderante, representando a superstição versus a ciência)] e o outro, o fogo da lareira que consome o chicote, instrumento de dor e prazer, com o qual Kurt vai “puxando” Nevenka para o amor absoluto, isto é, a reunião além-vida.
Se falávamos de gótico e de espaços de liberdade, percebe-se que o cinema de Bava vive nessa necessidade artesanal de filmar espaços e personagens na iminência de fazer surgir essa pulsão, modelando, revirando as situações de forma a construir uma ambiência que transcenda o que narrativamente se passa. Por isso trabalha na forja do género, no orçamento curto, na abertura e alteração constante dos seus argumentos. Não é pois de estranhar que o montador Mario Serendrai também surja creditado como argumentista de Maschera: we’ll make it up as we go along parece ser o mote. Dessa improvisação podemos retirar também uma versão mais solta de movimento. Nem era preciso assinalar a conhecida panorâmica de 360º na cripta de Ava para perceber que o movimento de câmara é em todos os seus filmes símbolo dessa experimentação e dessa soltura. Por outras palavras, uma panorâmica para o negro tem tanta escrita de Bava como os seus zoom in de perigo, os efeitos de espelho em La ragazza para marcar a desorientação de Nora ou o slow motion da carruagem de Javutich que faz sair tanto da história como o meta-filme dentro do filme que é Boris Karloff a montar um cavalo falso no final de I tre volti.
Nessa noção de circularidade, nesse merry go round, cabe desde logo a já referida passagem do fogo ao fogo, do início ao fim de Maschera, mas também o regresso de Nora às scalinata da Trinità dei Monti e aos cigarros de marijuana (terá sido tudo um sonho?) no desfecho de La ragazza, a cadeia de Reazione a catena (Baía Sangrenta, 1971), a ambição pelo anel da condessa que se repete em La Goccia d’Acqua, o movimento da placa da casa de moda que rima com o pendular do telefone, emoldurando no mesmo movimento todas as danças de morte de Sei donne per l’assassino (Blood and Blacklace, 1964). Dessa circularidade faz ainda parte a dispersão por géneros na carreira de Bava, que muito terão contribuído para a sua relativa invisibilidade e a passagem do homem às máscaras, aos manequins, às estátuas, às pinturas, aos bonecos (das modelos de Sei donne aos “modelos” de Lisa), tão assassinos sem rosto quanto testemunhas de face inerte. E, deixando a pena correr, como não reparar nessa circularidade entre o “mal” de Javutich e a sua luz maléfica. Não há como evitar que o mal, como máscara dionisíaca, seja mais um affair de cores, que varia do preto-e-branco cavado à ostentação dos technicolors rurais ou urbanos, e menos um desagravo do coração e das tragédias da vida. E nessa circulação, talvez o espaço, ora achatado à força de zooms, ora expandido pelo travelling e a profundidade de campo, surja como lugar donde emergem os elementos naturais do sonho e da “queda da casa de Bava”: a água que pinga, a neblina que pinta os exteriores “interiores”, o vento que soa num velho órgão de tubos, o fogo das inquisições…
Tudo isto e mais está presente no primeiro filme de Mario Bava com o qual se inicia esta breve retrospectiva da sua obra. Que pelo menos depois destes filmes se possa dele dizer o que Ava disse ao doutor Kruvajan antes de o morder: “Morrerás para os homens mas estarás vivo para a morte”. E essa morte, como sabemos, é também a imortalidade do cinema e das suas imagens.
Começa hoje às 21:30 na Cinemateca Portuguesa, com a exibição de La maschera del demónio a retrospectiva dedicada a Mario Bava, uma programação a meias entre o 8 ½ Festa do Cinema Italiano e o Museu do Cinema.