Há sempre um misto de surpresa e desconfiança quando vemos a nossa história tratada por estrangeiros. Tememos que o olhar de fora descubra em nós algo que desconhecíamos, ou fazíamos por esconder. Receamos também que olhos frescos desempoeirem aquilo que está já (bem) arquivado na memória colectiva, que essa frescura dessacralize os actos heróicos. E claro, há também o medo de vermos a nossa história transmitida com deturpações, incongruências, lapsos e demais devaneios estéticos que retiram (e reduzem) a grande memória nacional. Tudo isto produz também a referida surpresa já que a frescura não nos é natural quando olhamos para o nosso passado, a dessacralização é-nos já impossível e os devaneios estéticos para um realizador português que tratasse este tema seriam os pregos da sua crucificação. Les grandes ondes (à l’ouest) (As Ondas de Abril, 2013) é pois o resultado desse olhar estrangeiro sobre um acontecimento tão marcante como a revolução dos cravos, e por isso é um filme que tanto nos surpreende como nos incomoda.
Uma equipa de radialistas suíça é enviada a Portugal para reportar sobre a aplicação das ajudas financeiras ao país, “menos desenvolvido que o nosso, mas ainda assim simpático”, no ano de 1974. A 22 de Abril chegam ao nosso país uma jornalista feminista que dorme com o patrão para subir na carreira, um repórter de guerra com problema de memória, um técnico de som à beira da reforma e uma carrinha Volkswagen pão de forma azul. Entre o mestre de escola autoritário, o profissional do estado nacionalista e racista, a dona de casa sempre de perto, as crianças descalças na rua e o pide sempre à perna, viajamos por uma floresta de efígies do que era o portugal do estado novo, cada boneco mais caricatural que o anterior (até temos um homem de olho de vidro!). Não incomoda vermo-nos assim retratados porque nem por isso sentimos que o humor suaviza as condições de vida ou as mentalidades de então, aliás, acentua-as pelo ridículo que representam aos dias de hoje; o momento em que um pide espalha sandes de atum pela própria careca não é mais senão isso mesmo, uma expiação pelo riso.
Lionel Baier segue esta vertente algures entre a screwball e o vaudeville, fazendo confluir um humor regional (tanto suíço – as constantes votações dentro da equipa ou o sketch dos radialistas belgas – como português – as brincadeiras com o que fica perdido na tradução) com aquilo que mais facilmente associamos aos géneros referidos: a batalha do sexos, a libertação sexual, a utilização activa da música (a começar pelo Já o Tempo se Habitua de Zeca Afonso, passando pelas canções-senha da noite da revolução, tudo envolvido no jazz gingão do George Gershwin) e o bailado como elemento narrativo. Este último aspecto é talvez o melhor momento do filme; de repente, em noite de revolta, uma mulher é arrastada por uns pides e do nada surge um bando de bailarinos vestidos como as Pussy Riot (com capuches coloridos – uma série de alunos da Escola Superior de Dança) que digladiam a autoridade numa batalha coreografada nos becos da mouraria; ou então o momento à Elia Suleiman – talvez o último grande coreógrafo do cinema moderno. Filmar a revolução como uma festa – a revolução é alegria! – acaba por ser o que melhor faz Baier no filme. O problema prende-se com a infelicidade que é para cada um de nós, portugueses, saber que não foi assim que aconteceu. Que essa é outra das narrativas que se veio escrevendo ao longo destes últimos quarenta anos, tentando branquear o facto de que, mesmo mudando o regime, o país não mudou de um dia para o outro.
Vermos homens abraçados, mulheres beijando-se, ouvir referências a bacanais variados onde tudo e todos são experimentados faz-nos torcer o nariz: poucos dias depois do 25 de Abril já se ouvia o coronel Galvão de Melo avisar que “a revolução não foi feita para putas nem paneleiros”. A revolução poderá ter sido uma alegria, mas não fez avançar décadas a mentalidade de um país tacanho. Dar a ideia que assim foi é tanto ignorante como manipulativo.
Igualmente manipulativa é a intenção política do filme. Se a caricatura era a intenção, que nos ficássemos pela caricatura e pelas alfinetadas ligeiras à intervenção da Troika (a fiscalização das ajudas externas), mas Baier não consegue impedir-se de terminar o filme com o paralelismo à actualidade: onde mistura fotografias da revolução e dos cartazes e murais que ocupavam as ruas nessa altura com os cartazes e as pichagens em muros que ocupam as ruas nos nossos dias. Sentimo-nos pois como duas personagens no próprio filme que, assistindo a um discurso disparatado (onde se ouvem frases de ordem como “abaixo o ovo cozido, vivam as varizes!”), comentam, não sei o que ele está a dizer, mas é do caneco. Também era preferível que Baier se tivesse ficado simplesmente pelo disparatado (e caricatural, e musical e alegre). Teria sido do caneco.