Nathalie Granger (1972) assemelha-se a uma partida absurdista, com um longo set-up para preparar a conclusão de uma anedota, cuja intenção nem é ter piada. É um filme que assume uma missão contra uma narrativa e estrutura convencional, mas que o faz através de uma narrativa frágil e desconexa. É, acima de tudo, um filme de contradições, que passa a maior parte do seu tempo preocupado com o mal que ameaça lá fora, nos bosques que rodeiam a casa, para esconder que a verdadeira maladie está no interior das personagens. De um minimalismo sufocante, é um filme quase sem vida, que respira um complexo sentimento de separação entre as personagens e o que as rodeia. Se é repleto de gestos do que poderá ser um certo cinema europeu pretensioso, é, ao mesmo tempo, uma maqueta de uma visão nova para uma ideia de cinema, que seria desenvolvida mais tarde por outros realizadores.
A (in)acção do filme decorre no interior de uma casa dos subúrbios pacatos de uma cidade irrelevante, e no seu jardim com vista para um bosque, durante um dia. Duas mulheres vivem nesta casa com duas crianças – uma delas é Nathalie Granger, que logo no início do filme vê o seu futuro ameaçado pela possibilidade de ser enviada para um colégio interno. As duas mulheres (Lucia Bosé e Jeanne Moreau) dividem o seu tempo entre tarefas domésticas banais, como que anestesiadas pela sua realidade vazia, e, apesar de passarem a maior parte do tempo do filme juntas, pouco reagem à presença uma da outra, perdidas nos seus pensamentos. O filme investe grande parte da primeira metade a estabelecer esta existência dormente, para criar um retrato de alienação claustrofóbica no interior da casa, como a primeira parte do tal set-up. O marasmo contínuo e o quase silêncio que impera são interrompidos, abalroados mesmo, pelo aparecimento da personagem interpretada por um novíssimo Gérard Depardieu, um vendedor ambulante que entra na casa sem pedir permissão.
Durante um diálogo de vários minutos, transformado em monólogo pela falta de resposta das duas mulheres que apenas o interrompem para protestar a sua condição de vendedor, este tenta convencer as duas a comprarem uma máquina de lavar roupa, explicando as diferentes vantagens de um modelo em particular. Estas pouco reagem à sua presença, algo que parece normal pelo que o filme tentou estabelecer até aí, e acaba por ser natural que a sua passividade resulte na punchline da tentativa do vendedor, ao perceber que o modelo que estava a tentar vender é precisamente o mesmo que já existe na casa – se Duras não era propriamente conhecida pelo seu humor, aqui parece divertir-se com o absurdo da situação.
A criança que dá o título ao filme, apesar da sua presença furtiva no início, é uma das poucas preocupações do duo central do filme – há uma alusão a um possível comportamento violento de Nathalie na escola, mas que é desmentido pela passividade desta nas cenas em casa. Será tal comportamento fora de casa uma reacção ao ambiente doméstico? Numa discordância com a realidade imediata, a mãe de Nathalie parece apenas ocupada em garantir que a filha continue com as aulas de piano. Quando Nathalie regressa a casa, o som do piano arrasta-se pela casa num fim de tarde sonolento e rotineiro, mesmo que o dedilhar no piano que vemos não corresponda à música que ouvimos – outra das várias dissonâncias ao longo do filme. Apenas o regresso da personagem do vendedor altera momentaneamente esta inquietude, no que pode ser considerado como o mais perto de uma conclusão que o filme tem. Os últimos minutos do filme lembram o fim de L’eclisse (O Eclipse, 1962) de Michelangelo Antonioni, pela não-conclusão, pelo arrastar dos planos, pela forma de filmar um local em vez de filmar as pessoas – a casa, com os seus corredores vazios e imagens do exterior através de janelas, transfigura-se num limbo para o estado suspenso das personagens.
A opção de Duras pela escassez de diálogo ao longo do filme é um dos factores que contribuem para o ambiente sombrio da casa. Com o seu filme anterior, Détruire dit-elle (1969), Duras filmava uma adaptação de um romance seu de forma quase literal, com longos diálogos a ocuparem o centro do filme, sem lugar a contemplação. Com India Song (1975), a palavra volta a ocupar o lugar de destaque, com uma narração em off a descrever o que vemos ou os pensamentos das personagens, colocando o interior das personagens à mostra, algo que Duras tinha já explorado de forma magnífica no argumento de Hiroshima, mon amour de Alan Resnais (Hiroshima, Meu Amor, 1959). Mas em Nathalie Granger, apresenta uma visão diferente, que será trabalhada por cineastas como Chantel Akerman ou Claire Denis em filmes em que um ritmo pausado, quase hipnótico, permite tempo a personagens deambulantes, e que os pensamentos do espectador preencham o vazio do silêncio. Em Nathalie Granger, as palavras surgem dispersas, para darem lugar ao poder descritivo das imagens e à imaginação do espectador na composição de um imaginário soturno, com os pensamentos das personagens encobertos numa neblina de apatia.
Nathalie Granger será exibido dia 8 de Abril, no Teatro do Campo Alegre, no Porto, pelas 22h, integrado no ciclo “Abril Duras no Porto”.