Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l’abîme, O Beauté? (…) Tu marches sur les morts, Beauté, dont tu te moques.
Charles Baudelaire, Hymne à la Beauté
Eu queria confundir todas aquelas pessoas, criar uma obra de arte de sobrenatural realismo e espiritualizado naturalismo. Eu queria provar que nada é explicável em nenhum dos mistérios que nos circundam.
Joris-Karl Huysmans, À rebours
Em Umirayushchii lebed (O Cisne Moribundo, 1917), a Gizella, que é muda mas dança álacremente, um recém-enamorado entoa um panegírico: “Não há necessidade de falar, se sua alma está cantando”. A menina Lee, em Za schastem (Rumo à Felicidade, 1917), está ficando cega – mas é em torno deste pequeno e frágil ponto de oclusão que vai se urdindo o amor do casal composto por sua mãe e o advogado. Se Sergei Nikolaevich, em Gryozy (Dias de Sonho, 1915), se apaixona pela atriz Tina, é porque ela lhe aparece como o simulacro da esposa morta. Em Posle smerti (Depois da Morte, 1915), Andrei, até então inseguro, cai de amores irremissivelmente pela atriz Zoya quando a sabe defunta, capturada para sempre no limbo de sua paixão narcísica. Os objetos de amor e desejo nos filmes de Bauer são rarefeitos e evanescentes – sonhados ou rememorados, na iminência da morte e do Oblivium, arruinados ou maculados pela finitude, embalsamados no Angst da paixão funesta e da vidência elegíaca. O melodrama em seu cinema é o catalisador de uma aspiração metafísica: tornar presente e ressoante o fantasma, manifestar a aura dos instantes imponderáveis e irrecuperáveis, revelar as correspondências sinestésicas entre o sonho e a vigília, o pretérito perfeito dos mortos e o presente imperfeito dos vivos.
Com justeza se remarca a suntuosidade do décor (Bauer era também designer), do cadre, dos movimentos de câmera nos filmes deste grande preciosista. Lourcelles: “A morbidez, o estetismo e o decadentismo, a beleza dos cenários adequados, que constituem uma espécie de psicanálise de certos personagens, (…), o modernismo da colocação dos atores e de sua interpretação compõem, nos melodramas crepusculares de Bauer, um universo cuja coerência e fascinação se impõem ao espectador ao fim de alguns minutos de projeção”. Mas fala-se menos do contraponto especular e “de base” desta magnificência formalista: um arcabouço realista, proporcionado pela utilização sistemática do plano seqüência, da profundidade de campo, da luz natural em exteriores (Za schastem, Gryozy) e à relativa transparência da interpretação dos atores. O cinema de Bauer cultiva um paradoxo que talvez consista na chave para o seu imarcescível frescor: ele traduz os estados “intermediários” e alterados da consciência (sonho, delírio, interações mediúnicas, transes) com o rigor lapidar de uma perquirição documentária. As poses moduladas e tamisadas pelos tempi no plano seqüência; a fluidez e flexibilidade de intercursos entre os corpos propiciados pela profundidade de campo, que aqui perde o caráter estático, indicativo do “proscênio” teatral, assumido até então em todo o cinema primitivo; e esta utilização sistemática das bordas do cadre, sempre frementes de movimentos ou ocupadas por objetos de cena; estas são características através das quais a mise en scène de Bauer busca dinamizar o preciosismo, inseri-lo num circuito vivo e presente de movimento, luz e ritmo; a intuição baziniana de que os grandes filmes sobre teatro são aqueles que se encarregam de restituir o punctum da representação teatral – do “ao vivo” mediúnico que o teatro mobiliza – já se aplica a estes filmes, feitos na década de 10. O realismo dos meios encarece dialeticamente o inaudito: o fantástico adquire uma pátina de rotineiro, e o frugal um prisma alucinatório. Assim como Feuillade fez com o conto de mistério e espionagem, Bauer só consegue conceber o trágico e o extraordinário sob a égide da crônica de costumes, do folhetim, do registro hebdomadário. A alquimia da existência à mão e a olho nu, em “tempo real” e ao ar livre – mas para quem sabe olhar; atento e cúmplice à mediação mágica do tempo, este Merlin do fantasma.
O simbólico, o supra-natural aparecem recortados a navalha, trabalhados segundo uma densidade fenomenológica que em nada ficam a dever aos filmes ditos “realistas”: ao art-déco do cenário da mansão, em Za schastem, confronta-nos o contracampo que mostra a mãe de Lee num plano geral e de exterior, sobre os degraus da escadaria; esta intrusão da Natureza e do sol num filme até então claustrofóbico é epifânica, e traduz, numa chave metafórica, a contraposição entre o regaço maternal (a entropia do conforto e do conformismo burguês) e os prados verdes e livres, que representam para a menina debilitada a possibilidade de um novo mundo: complementarmente, a paixão pelo amante da mãe reforça a tensão desta rivalidade espacial e afetiva entre o mundo “de Dentro” e o Fora. Em Sumerki zhenskoi dushi (Desespero de uma Mulher, 1913), e Zhizn za zhizn (Uma vida por Outra, 1916), os longos e distanciados planos frontais onde desenrolam-se as recepções levam-nos a uma imersão profunda no mundo fátuo e asséptico que aprisiona as heroínas; acresça-se a isto a adstringência suscitada pelo uso de colunas no cenário, e a verticalidade contraente do cadre 1:33 assume proporções draconianas; e como não pensar no “neo-realismo” avant la lettre de The Struggle (1931) de Griffith, diante desta ronda desordenada e arfante pelas ruas de Sergei Nikolaevich, no rastro da atriz Tina em Gryozy? Ou Gizella, o ”cisne dançarino”, debruçada sobre a água manchada de luz…
Os filmes de Bauer são escrínios fascinatórios compostos segundo a lógica icônica e ritualística dos tableaux-vivants; mas estes possuem eixos descentrados (a câmera coalescente, entre cicerone e bedel, que vai abrindo caminho para o jovem “sem lugar neste mundo” Andrei em Posle smerti); e são animados e vibrados pelas aragens do mundo; a “matéria” de que são feitos os sonhos – a textura irisada pelos raios de sol e percutida pelos arpejos do tempo – dá-lhes uma estranheza particular: na rêverie sonambúlica de suas heroínas (ocupando o primeiro plano alto-relevo), já não sabemos que dimensão ocupar; como nas vertigens hipnagógicas que nos atingem naquele lusco-fusco que medeia entre o devaneio e o sono, habitamos um entre-deux; espaço intersticial, vacilante, que as crianças e os místicos devem conhecer intimamente. Mas em Bauer estes transes – esta trepidação e cintilação da matéria sob o sopro intermitente do espírito – dão-se em plena luz do dia, ou aconchegados sobre as chaise-longues do fausto burguês. O invólucro que nos protegia do demoníaco – do Id?, como nos sugere Lourcelles, ao reivindicar um sentido psicanalítico para a arquitetura de seus cenários – foi rompido. Neste sentido, Posle smerti é um filme paradigmático de sua démarche (e talvez o seu mais anedótico). Quando Andrei recebe a visita da atriz Zoya, morta recentemente, um acinzentado luminoso substitui-se aos azuis e ocres da vigília: neste filme, a mudança do cromatismo no plano designa precisamente esta imersão, a princípio reservada ao sonho, do natural no supra-natural – da duração citadina na Eternidade metafísica, do perfil na sua sombra, da figura no espectro. Só que as visitas da morta se multiplicam, vertiginosamente: já não lhe basta a grota encantada do onírico; Andrei desmaia “para encontrá-la”, tem vertigens ao café e na rua: todo o horizonte da vida social acaba envenenado. O espiritual imiscuiu-se definitivamente no plano da imanência: fustigando-a sem piedade, destituindo-a de seus enleios e fascínios (embustes?); como um vampiro, a profundeza exige seus direitos – um lancinante desejo, até bem refugiado no fundo de nosso sangue e no avesso de nossa sombra, advém à superfície. Então, é o fim de toda superfície – a vitória incondicional das caves subterrâneas, dos baixios e porões do Ser. Os seus filmes descrevem estes processos de infiltração, em que a presença é corroída pela sua sombra e o Mesmo pelo abominável Alter que o espera ao fim do caminho. Se possuem a princípio atmosferas e obsessões comuns aos expressionistas, é na contramão desta corrente que o seu cinema se coloca: à saturação paroxística, às mascaradas grotescas dos Caligares e Estudantes de Praga, Bauer opõe a transparência gouache, o relevo a bico-de-pena do gesto, os conciliábulos entre um corpo e um décor ( este grande corpo artificial, onde a figura humana descreve uma topografia idiossincrática, feita de espirais e ziguezagues “na vertical”…)
Sublimação, ascese, conversão sempre foram artes clássicas: ousaria mesmo dizer que o classicismo não consistiu em nada além de uma concepção sub species aeternitates aplicada aos escombros e anfractuosidades da finitude; em uma manobra sublime que consistiria em reter, do trânsito imemorial do que é, um espaço-tempo privilegiado, onde a vida passageira possa cristalizar-se, enfim liberada das agruras da carne e das flutuações do devir – transfigurada em signo: as mãos espalmadas, lançadas contra os céus, de Caravaggios e Parmigianinos, o pedaço de muro amarelo em Vermeer que Proust celebrizou, o leitmotif do anjo nas elegias de Duíno… em Bauer, classicista com laivos de barroco, estes momentos se inscrevem no plano-frontispício – quando os personagens vêm até a frente e se postam, transfigurados como santos extáticos, alterando (alterizando) a planura e a frontalidade do que se manifesta com a ressonância iniciática daquilo que se sugere e adivinha: o plano como um campo mediúnico, sismógrafo do invisível à espreita (sob, dentro de nós). As intrigas, as efemérides ficaram para trás (a profundidade de campo não seria igualmente uma forma de tornar visível esta bidimensionalidade inerente a toda experiência humana – este Janus encarnado, em um mesmo movimento angelical e demoníaco, Outro e Mesmo?). Sob a luminosidade pancromática do nitrato, uma Paixão advém; nos traços franzidos de expectação e nos olhos que se lançam para o Infinito do fora de quadro, o cinema finalmente viu: uma primeira oferta de Divino se mostrou ali, de Diabólico também. Revendo seus filmes, voltamos a ver e a ser vistos.