É costumeiro na crítica de cinema tentar, por um lado, encontrar nos filmes linhas autorais e, por outro, encontrar correntes comuns no conjunto das obras que se vão vendo. São portanto análises em sentido inverso, a primeira vai no sentido do pormenor que se esconde em cada filme (e que revela desse pormenor o arcaboiço da maquinaria que o realizador opera), a segunda viaja para o patamar superior e de lá tenta encontrar padrões reconhecíveis (e que portanto trata de fazer confluir tendências e escolhas de vários criadores). Tome-se então o trabalho de David Gordon Green e em particular este seu Prince Avalanche (2013) para fazer a análise dessas duas coisas: a tendência e o pormenor. Que têm em comum realizadores como Kelly Reichardt, Debra Granik, Lance Hammer, Sean Durkin, Benh Zeitlin? A tendência. Juntamente com Gordon Green, podemos encarar estes cineastas americanos como nomes representativos de um redescoberto interesse pela América profunda e rural. A cada um deles, ainda que por motivos diferentes (mais políticos, mais paisagísticos), interessa filmar as comunidades pobres do interior dos Estados Unidos, ou simplesmente a ruralidade. Talvez porque lá ainda se permita que o tempo corra lentamente (o doce prazer de não fazer nada) e por isso talvez apenas no campo se consiga ainda fazer um cinema americano pausado e meditativo. Ainda nas tendências, mas desta vez de um patamar mais raso, tem-se descrito a obra do Gordon Green [pelo menos a sua estreia, George Washington (2000)] como o resultado de misturar num grande tacho uma gorda porção de Charles Burnett de Killer of Sheep (1979) – pelo retrato duro de uma paupérrima comunidade negra -, uma infusão das “atmosfera poéticas” do Terrence Malick de Badlands (Noivos Sangrentos, 1973) e Days of Heaven (Dias do Paraíso, 1978) – os rallentis, a utilização da música, a fotografia extasiada – e umas pitadas do Harmony Korine de Kids (Miúdos , 1995) e Gummo (Os bons Malandros, 1997)- um certo surrealismo e o prazer de desenhar a traço grosso. O problema destas receitas e engavetamentos é que cedo se mostram insuficientes ou simplesmente errados. Isto porque não só os realizadores não permanecem estagnados como muitas vezes aquilo que produziram não reflecte ainda totalmente aquilo que é o seu cinema. Por exemplo, Reichardt ao enveredar pelo filme de época com Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) cortou com a linha que os dois filmes anteriores davam a entender – e não de propósito, todos os outros realizadores referidos não têm mais que uma longa-metragem. No caso de Gordon Green, esse apelo pelo campo parece não esmorecer, mas também o seu cinema vem, de filme para filme, mostrando que se compõe menos de uma fórmula referencial (Burnett+Malick+Korine) e mais de uma voz própria (David Gordon Green). A esse respeito percebemos que o máximo do seu malickianismo se deu com All the Real Girls (2003) e o máximo do seu korianismo se deu com Undertow (Contra-Corrente, 2004) – talvez o seu melhor filme e também o seu filme mais desequilibrado – e que Snow Angels (Anjos na Neve, 2007) tentava um caminho diferente (e próprio) pela estrutura do filme puzzle, cheio de personagens principais, mas que se revelava incapaz de gerir todos esses personagens: emaranhava-se na teia que tinha estendido. No caso de Prince Avalanche não só Gordon Green evita o peso referencial, como reduz tudo – personagens, espaço, narrativa, tempo de rodagem (apenas duas semanas) -, contrariando assim o passo em falso que fora Snow Angels. Perguntar-se-á o leitor sobre o que resta então de Gordon Green no filme, responderei eu que resta tudo aquilo que faz do realizador um cineasta. Se há figura fundamental no cinema de David Gordon Green, ela ganha forma no confronto entre a relação amorosa e a relação fraternal, normalmente em detrimento da primeira. Veja-se o romance cândido de adolescentes no início de Undertow que rapidamente se vê terminado por querelas familiares e de como essas mesmas querelas potenciam um outro tipo de amor entre os irmãos que protagonizam o filme, ou de como em Snow Angels e em All the Real Girls assistimos à decadência do amor romântico (os divórcios, as separações, as traições) mas como – de algum modo – os laços de sangue se reforçam nesse processo, ou ainda – e mais evidente ainda – as comédias de Gordon Grenn (tantas vezes vistas de lado e relegadas ao estatuto único de projecto alimentício): Pineapple Express (Alta Pedrada, 2008), Your Highness (Real Desatino, 2011), The Sitter (A Desbunda, 2011). O primeiro sobre a relação de amizade improvável entre um traficante e um cliente (que se constrói das adversidades que uma guerra de cartéis despoleta), o segundo sobre como uma epopeia medieval permite solidificar a relação entre dois irmãos anteriormente distantes e o último sobre como a ligação entre um babá e as crianças ao seu encargo pode ser mais forte (de novo o narcotráfico como catalisador) que um namorico. Prince Avalanche não escapa pois a esta narrativa do fraterno/amoroso, debruçando-se sobre dois homens (sempre homens), colegas de trabalho, cujo serviço consiste na pintura das barras amarelas tracejadas que dividem o alcatrão em duas faixas opostas – estrada essa que parece nunca acabar, mergulhada numa floresta de ramagem espessa (sempre a ruralidade). De novo uma relação a princípio conflituosa que se torna (pela própria conflituosidade – e como reacção a um desgosto amoroso, cá está) num amor não-erótico entre dois homens, que por falta de melhor expressão se pode chamar male bonding. O que é surpreendente no cinema de Gordon Green é a forma como a dita ruralidade aparece sempre infectada ou de surrealismos, ou de formalismos, ou de simbolismos. Infecção essa que não raras vezes incomodava pela exibição extravagante de referências e/ou virtuosismo (vide os longuíssimos planos-sequência de All the Real Girls ou a montagem alucinada de Undertow). As comédias de lata parecem ter obrigado o realizador à contenção o que, no seu caso, foi positivo; Prince Avalanche é um filme mais contido do que lhe é habitual (mas permanece a excessiva dependência na música, nas câmaras lentas e na montagem à videoclip), sem no entanto deixar de nos presentear de novo com uma infectada ruralidade. O interessante é que aqui o disruptivo ganha expressão cinemática (mais do que apenas técnica): o amarelo. É pelas barras amarelas que se propulsiona a narrativa, que quase nem pode assim ser chamada, é o amarelo que invade o espaço natural (por contrastar com o verdejante bosque; há um plano incrível em que um riacho de água cristalina se vê progressivamente turvado pelo amarelo da tinta), e é também o amarelo a cor que invade os próprios personagens (os sapatos que se pintam de amarelo). Glosando uma emblemática frase de Godard: não é tinta, é amarelo.
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