As razões para o facto de a obra de Aleksei German (falecido em Fevereiro deste ano) ser tão pouca conhecida no Ocidente são variadas e nebulosas: a censura soviética que condicionou a criação, exibição e distribuição dos seus filmes; o facto de o próprio German, um perfeccionista compulsivo, se dar a si próprio um período de tempo assinalável entre cada filme, resultando numa obra pouco extensa [5 filmes e um outro, Sedmoy Sputnik (The Seventh Companion, 1967) em co-realização], ainda que superior; ou, finalmente, o facto de a figura e a obra de Andrei Tarkovsky terem ofuscado e deixado na sombra o trabalho de German, que, no entanto, vem sendo considerado como um autor tão ou mais talentoso que o próprio Tarkosvky – Moy drug Ivan Lapshin (My Friend Lapshin, 1984), intricado noir soviético ambientado nas vésperas das purgas estalinistas, terá mesmo sido eleito como o melhor filme do período soviético pela crítica russa.
Aliás, e voltando-nos para o nosso objecto central, Aleksei German abre Proverka na dorogakh (Trial on the Road, 1971), considerado uma das suas obras-primas, tal qual o viria a fazer, anos mais tarde, nesse Moy drug Ivan Lapshin, ou seja, com uma voz off (identificável com o miúdo no filme de 1984; desconhecida em Proverka na dorogakh) em racconto, explicando-nos aquilo que nós e os dois desgraçados camponeses russos acabaram de ver (espantosos planos dos seus rostos, com a chuva a fustigar os seus olhos miúdos e aterrados): dois soldados alemães a regarem de gasolina, com uma normalidade banalmente malévola, uma vala oculta onde aqueles haviam escondido umas quantas batatas. Não matam os camponeses, não lhes dirigem a palavra nem os insultam, não lhes fazem mal; regam, apenas, as batatas, pois sabem ser essa crueldade – a de aniquilar as possibilidades de sobrevivência a longo prazo, assim se promovendo a morte lenta e desgastante – a que mais fere a dignidade desses dois pobres coitados. Neste momento, já percebemos onde estamos: 2.ª Guerra Mundial, URSS, durante a investida nazi [o mesmo espaço-tempo em que se ambienta Dvadtsat dney bez voyny (Vinte Dias sem Guerra, 1977)].
Se, em Ivanovo detstvo (“A Infância de Ivan”, 1962), de Tarkovsky, a um rapazinho era roubada a infância por causa de uma guerra que nada lhe dizia (a não ser servir de espião especialmente hábil devido ao seu tamanho e desembaraço físico) – que nada podia e devia dizer –, aqui, ao protagonista, o sargento Lazarev, é roubada a honra, a dignidade, a honorabilidade, e tudo em virtude daquele tipo de coisas que a guerra transforma numa trágica trivialidade: depois de capturado pelos nazis, Lazarev, antigo sargento do Exército Vermelho, teve que optar por ser fuzilado ou servir a Alemanha contra a sua pátria. “Estava desesperado, só queria viver”, justifica-se, angustiadamente, perante o Capitão Lokotkov, que o recebe de volta quando consegue escapar dos “Fritz” (assim chamavam os russos aos alemães, denominador comum que ilustra bem o anonimato, a impessoalidade, enfim, a desumanidade sinistra gerada pela guerra, palco de confronto de sentido único, ou seja, entre “nós” e os “os outros”, os “Fritz” não-humanos do lado de lá da barricada). Lokotkov, sem dúvida o humanista no meio daquela desumanidade, é o único que abre os braços ao regresso de Lazarev (que, quando recapturado pelos russos, facilmente poderia ter morto o seu perseguidor, mas não o fez), ao contrário do resto das suas tropas, que o acusará constantemente de ser um “traidor à pátria” (um “traidor à pátria” que decidiu não trair… a própria vida) e pedirá, vezes sem conta, a sua cabeça. É também esse o intento do Major Petushkov (Anatoliy Solonitsyn, o protagonista de uma mão cheia de filmes de Tarkosvky, com especial destaque para Stalker, 1979), que o concretizaria não fosse a oposição de Lokotkov, que, sendo-lhe inferior na hierarquia militar, tentará levar a sua avante com pinças – sem dúvida por isso é que Lokotkov confia a Lazarev uma missão de alto risco (o desvio de um comboio bem na toca do lobo) como forma de legitimar, definitivamente, Lazarev aos olhos das tropas; o problema é que, apesar do sucesso da operação (muito graças à destreza de Lazarev), Lazarev acaba… morto (cena lindíssima, com a espingarda, caída na neve, a disparar sozinha), nesta vã glória ressoando o esforço inevitavelmente – tragicamente – fútil que toda a guerra e seus actos “heróicos” convocam.
Por esta teia moral de “traição”, culpa e redenção se entrevê já, pois, o pendor anti-bélico que Aleksei German imprime a Proverka na dorogakh [que terá o seu reflexo “ocidental”, por exemplo, num Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957), de Stanley Kubrick], filme de um realismo insuperável (nisso se afastando, diametralmente, da poética e do onirismo que pontuam Ivanovo detstvo) em que a chuva, a neve, o vento, o frio, a lama, as fogueiras improvisadas no bosque, são tão importantes na composição desse quadro realista como os recursos técnicos (o preto e branco, a representação dos actores, a câmara) e narrativos. E se o filme foi censurado (15 anos bloqueado até à sua exibição, já no decorrer da Perestroika) é porque os censores soviéticos não eram estúpidos de todo (como se sabe, nem sempre a censura “vê” tudo o que está implicado, precisamente porque, no que não deixa de ser paradoxal e engraçado, estando-lhe a “limitação” e o rigidismo no sangue, ao pretender exclusivamente “limitar”, acaba por ter uma visão “limitada” do próprio objecto). É que um visionamento mais apressado do filme poderia sugerir a personificação do “herói soviético” (apologismo extensível a todas as ditaduras) em Lazarev, ao menos a partir do momento em que este retorna às tropas soviéticas. Mas o filme não pretende, de todo, concorrer para essa visão das coisas; pelo contrário, em momento algum, Lazarev, homem de poucas palavras e que parece carregar o peso do mundo nos ombros, invoca o “socialismo”, o “bolchevismo” ou o “Partido” para tentar fazer crer na sua lealdade. Não, Lazarev é só um homem comum (era taxista antes da guerra, um “trabalho normal: girava o volante e juntava as gorjetas”, como conta a Inga) que, como tantos outros, perante a morte iminente, optou por sobreviver (há um gesto de carinho por estas “pessoas comuns”, na senda da declaração de amor explícita que German lhes dedica na cena inicial de Moy drug Ivan Lapshin). “Não me interesso por política, dos fascistas só conhecia a canção”, sentencia Lazarev. Aliás, só por uma vez se ouve esse tipo de slogans no filme (quando Lokotkov invoca o “Partido”), como que se pretendendo mostrar, para além das parangonas institucionais verbalizadas por aqueles que se sentavam confortavelmente em Moscovo, os bastidores da guerra, o seu lado mais verdadeiro e, por isso, mais humana e psicologicamente complexo (será sempre fácil para aquele que estiver no recato de sua casa dizer que alguém que opta pela vida em vez da pátria é um “traidor”). É justamente nesses bastidores que a ténue linha que separa o Lazarev traidor (quando é recapturado pelos soviéticos) do Lazarev herói (quando “morre pela pátria”) ilumina, uma vez mais, o absurdo, o ilógico da guerra. Obviamente que este quadro incomodou as elites soviéticas, que faziam do “herói soviético” uma narrativa essencial para a insuflação motivacional do povo e para o fazer crer na bondade do esforço nacional que a guerra então exigia.
“Covarde”, “traidor”, dirão alguns (como os do filme), nesses qualificativos indo, justamente, o que German pretende, e consegue magistralmente, com o filme interrogar: a estupidez e a ausência de sentido da guerra, geradora de situações “impossíveis”, porque absurdas – no sentido em que, de um ponto de vista humanista e ético, nunca um homem se devia ver colocado perante tais dilemas –, como aquelas que opõem a vontade de viver à lealdade a um país ou, pior, a uma causa distante e que pouco nos diz (qualquer que seja o “-ismo” em causa). Embora nem todos os colaboracionistas (o melhor plano do filme talvez seja o de uma multidão de soldados russos capturados a bordo de um barco nazi pelo rio fora, e a quem Lokotkov poupa a vida decidindo não explodir com uma ponta férrea, mesmo contra as ordens de Petushkov) sejam tão neutralmente representados como Lazarev, a verdade é que mesmo os “vira-casacas” mais empenhados (como aquele que escapa aos soldados soviéticos a meio de uma caminhada) não deixam de convocar sempre a mesma perturbante questão: até onde é que a lealdade a um país ou a uma causa (sobretudo quando a ela somos forçados a aderir) se sobrepõe ao instinto pela sobrevivência (e ao gosto de viver, já agora)? Indivíduo vs Colectivo, então – binómio que foi também, em grande parte, o que marcou a vida de Aleksei German, cineasta cujo autorismo (individualismo, neste sentido) sempre chocou com os ditames impostos pelas autoridades soviéticas, para quem, como se sabe, qualquer trilho autoral era um desvio individualista (e burguês, com certeza, numa das associações mais destituídas de sentido que a doutrina soviética já pariu) à nova arte socialista, et pour cause “colectiva”. Os que já viram a derradeira obra de German, Trydno byt bogom (Hard To Be a God, 2013), que causou furor no Festival de Roterdão, comentaram, aliás, que o filme faz, precisamente, a síntese de todas estas questões num épico sci-fi de três horas passado no imaginário planeta Arkanar. Resta esperar que o filme chegue – já não dizemos “em breve” – às salas portuguesas, para que possamos redescobrir – pelo fim… mas seja – a obra singular de um dos mais subvalorizados realizadores do cinema moderno.