Ben Affleck, Ben Stiller, Charles Laughton, Clint Eastwood, Ed Harris, George Clooney, Ida Lupino, Jodie Foster, John Cassavetes, John Wayne, Kevin Spacey, Marlon Brando, Mel Gibson, Paul Newman, Robert De Niro, Robert Duvall, Robert Redford, Sean Penn, Sylvester Stallone, Tommy Lee Jones… O que têm em comum estes nomes? Sim, são estrelas de Hollywood, ainda que eternas, umas são mais antigas do que outras, umas mais cintilantes, outras mais apagadas. Mas há mais: todas estas estrelas, sem abdicarem da interpretação, quiseram experimentar a cadeira de realizador ou realizadora. Foi o que aconteceu paradigmaticamente em The Night of the Hunter (A Sombra do Caçador, 1955), único título realizado por Charles Laughton e hoje considerado por boa parte da crítica um dos maiores filmes de todos os tempos – em 2008, os Cahiers du cinéma chegaram-no a pôr no segundo lugar da sua lista. Cassavetes, Eastwood, Lupino e Newman são os outros actores-realizadores que podem furiosamente abalar a nossa desconfiança quanto a estes “(as)saltos de carreira”. Ora, a televisão portuguesa ofereceu-me no último mês três exemplos do que pode correr bem e mal quando uma estrela (finalmente!) dá direcções em vez de ser dirigida. De Niro, Clooney e Wayne. Foi à pala deles que a nossa televisão, nos canais Fox Movies e Hollywood, passou respectivamente A Bronx Tale (Um Bairro em Nova Iorque, 1993), Leatherheads (Jogo Sujo, 2008) e The Alamo (Álamo, 1960). Os resultados são divergentes, sendo que faz toda a diferença a maneira como cada estrela segura a tocha da realização no seu filme.
É sabido que André Bazin nunca se sentiu como peixe na água no seio da chamada “política dos autores”. Aos seus famosos elogios à genialidade do sistema de Hollywood em «La politique des auteurs» junta-se a menos lembrada homenagem que fez a um dos actores mais carismáticos da grande indústria: Humphrey Bogart. No ano da sua morte, causada por um cancro no estômago e “um milhão de whiskeys”, Bazin escreve um artigo para os Cahiers du cinéma, «La mort d’Humphrey Bogart», onde procura fixar a assinatura da sua metapersona mítica. Para o crítico francês, Bogart vai trabalhando, de filme para filme, numa espécie de progressiva internalização das ideias de decadência e de morte, como que chamando a si, precisamente, a sua própria decadência e a sua própria morte. Ele foi o epítome da “imanência da morte” e o admirável e venerável reflexo da nossa própria decomposição. Falando dos dentes, isto é, do seu sorriso “de morte”, e da ambivalência sulfurosa das suas composições, que davam lições de nonchalance ante as artimanhas do destino, Bazin propõe associar a Bogart não só uma alma, mas, mais do que isso, uma acção efectiva de cineasta sobre a sua obra. Os filmes que protagonizou desde sensivelmente High Sierra (O Último Refúgio, 1941), a obra walshiana que o catapultou para o estrelato, têm em comum esta espécie de pulsão auto-destrutiva que o precipitará, empurrado por John Huston e Howard Hawks, para mais frios embates com o destino no espectro do film noir.
No seu Theory of Film, Siegfried Kracauer encontra uma boa definição para “estrela do cinema”: aquele actor cuja imagem, corpo e gestos, suplantam a memória dos filmes onde entrou. Em certa medida, tal como Bazin, Kracauer vai enfatizar “o ser”, a casualidade e o físico da star. Ora, para ser um actor cinemático este “não deve interpretar”, isto é, “(…) o actor de cinema deve actuar como se não estivesse a actuar, como se fosse uma pessoa real apanhada no acto pela câmara”. Por portas travessas, Kracauer aproxima o não-actor à star de Hollywood, afirmando que “A típica estrela de Hollywood parece-se com o não-actor na medida em que incarna uma personagem idêntica a si ou pelo menos desenvolve-a a partir dela, frequentemente com a ajuda de maquilhagem e especialista em publicidade”. Esta definição lembra-me inadvertidamente a desilusão de Ingrid Bergman quando contracenou pela primeira vez com um dos seus ídolos, Gary Cooper. Para a actriz sueca, que nas mãos de Rossellini viria a sofrer na pele a co-habitação com não-actores, parecia impossível que um actor tão completo e robusto desempenhasse o seu trabalho imbuído de uma total indiferença pela psicologia de cada cena. Cooper era a personificação da maneira mais justa de se ser uma star no grande ecrã. A lição era simples e Bergman entendeu-a em pleno: “don’t act”. Personagem e pessoa unidas uma à outra, qual elo mítico, como a frente e o verso de uma folha branca, onde a luz e a sombra do cinematógrafo produzem a magia ou o fetiche glamourizante. A boa star limitava-se a ser ou a estar assim.
Quando o actor-estrela passa a auto-dirigir-se é inevitável darmos por nós a aferir em que medida o “papel de realizador” é interpretado por este à frente das câmaras, isto é, de que forma ele não o sabe interpretar tão bem quanto a sua metapersona mítica. Ora, isso aconteceu comigo no referido triple bill que a nossa televisão involuntariamente produziu no último mês: filmes realizados por actores de dimensão universal e no seio dos quais se problematizam relações de poder e liderança (familiar, desportiva e militar), que de modo algum são estranhas às novas funções ali testadas, pela primeira vez no caso de Robert De Niro e John Wayne, pela terceira vez no caso de George Clooney. Se o filme do grande Duke parece produzir um equilíbrio magistral entre os universos dos seus maiores professores, Hawks e Ford, o filme assinado por De Niro joga ao arrepio do pai Martin Scorsese. A intuição de Wayne é a sua melhor amiga na sua estreia na realização, ao passo que De Niro parece reverter molengonamente o seu ADN mítico. Da parte de Clooney, encontro uma brincadeira com máscaras já usadas que não conseguirá resgatar a sua realização da generalizada caricatura de grosso “traço nostálgico”, à la irmãos Coen.
Um filme com De Niro e um filme de De Niro. “De De Niro”, a repetição da preposição mostra como a redundância na função pode originar um objecto desinspirado – e, depois, The Good Shepherd (O Bom Pastor, 2006) não veio ajudar muito… De facto, a única coisa interessante de A Bronx Tale, mas também a mais reveladora da sua enorme carência de sal, é a forma como Robert De Niro-actor canaliza Robert De Niro-realizador. Lorenzo Anello é um condutor de autocarros e um pai de família que procura manter o filho, Calogero, longe das más influências do bairro onde vivem. Dono de uma paternidade agressiva, ele vai constantemente amparando o caminho do rebento no sentido da “boa direcção”. Uma insistente, quase ditatorial, mise en place que funciona tanto numa dimensão territorial (“ouve-me filho, não podes ir àquele bar, onde param as pessoas más do bairro”) como numa dimensão moral (“ouve-me filho, deves sempre escolher o caminho do trabalho, da honestidade e do amor, ao invés da ‘vida fácil’ do crime, da chantagem e do medo. Ouviste filho?”).
A presença de De Niro no seu filme é então um signo do próprio gesto de um actor de facto, que no filme é interpretado, de jure, pelo filho (à procura de um “papel” na vida), a tentar dirigir a sua primeira obra também atrás das câmaras. Por esta ordem de ideias, parece-me evidente que Chazz Palminteri corporiza a figura do produtor totalitário no filme muito mais do que ele é “atrás dele”, até porque, de facto, apenas assina o argumento. O seu mobster carismático, que parece ter as palavras-chave para todos os clubes da cidade e a quem pertence sempre a última palavra sobre cada uma das movimentação indiscretas no seu bairro, terá como alma mater, atrás das câmaras e além-filme, o De Niro de Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990), actor que neste A Bronx Tale, à frente das câmaras, promove a sua mais radical inversão – e, por tão evidente que é, não se torna menos numa desinspirada repetição de si mesmo. Numa altura em que era impensável conceber-se o cinema de Scorsese sem De Niro, este último faz um filme onde é inevitável pensar-se em Scorsese e, como corolário, onde é inevitável lançar-se a pergunta sobre onde se esconde ou para onde foi o seu De Niro. Como disse: don’t act? Em A Bronx Tale, De Niro não evita interpretar De Niro e, pior, fá-lo para um realizador impossível à época: um Scorsese para toda a família. Ó bruta benignidade…
Se Robert De Niro imita o negativo do De Niro de Scorsese, numa versão de working man probo e pai de família exemplar a reprimir – e a roubar ao filme – o fogo, a selvajaria, a vibração do melhor italo-americanismo from the Bronx, George Clooney protagoniza em Leatherheads um preguiçoso e narcísico copy paste do George Clooney dos irmãos Coen. Neste filme encontramos o principal elemento que lhe vai faltando e que o põe a anos-luz da sua “estrela polar”, Cary Grant: a capacidade para verdadeiramente arriscar e sair da sua zona de conforto, aquela a partir da qual Clooney-actor se tem desmultiplicado em papéis de galã que vende máquinas de café ou assalta casinos fazendo uso da mesmíssima inclinação de rosto, sorriso suave e olhos adormecidos. Como diz David Thomson no seu The New Biographical Dictionary of Film, ao contrário de Grant, Clooney age sempre como se fosse o melhor amigo de Clooney e, por isso, tudo é pesado e controlado para evitar passos em falso ou momentos de vulnerabilidade que lhe roubem o tal look que vale milhões. A sobreproduzida auto-ironia que busca nos seus papéis em comédias românticas, como é esta ou Intolerable Cruelty (Crueldade Intolerável, 2003), é o exemplo acabado dessa falta de audácia. De qualquer maneira, num país que decidiu não passar Leatherheads no cinema, o que sobra dele é essa noção, à qual o próprio Clooney não será indiferente, de que mesmo que tudo desapareça restará sempre no fim, à guisa do gato de Alice no País das Maravilhas, o bom sorriso Nespresso. O suficiente, portanto, para passar na TV.
Se o filme desportivo já é visto com desconfiança, a estranheza de um filme sobre uma modalidade desportiva que não seja futebol é um obstáculo difícil de transpor para um público que não aguenta a novidade, ou melhor, para uma audiência que não tolera a estranheza de “o outro” – do “pensamento único” futeboleiro à xenofobia como fenómeno puramente cultural vai um passo pequeno. Em Portugal, Leatherheads estreou-se directamente em DVD, porque não soube vender a ideia de que, nele, o futebol americano é só um álibi para filmar uma screwball comedy de pacotilha, que só tem olhinhos para os flirts enjoativos de Clooney e o triângulo amoroso que este polariza na companhia de uma personagem de cartão interpretada por John Krasinski e de uma Miriam-Hopkins-que-se-estampou-de-frente-com-Mae-West da autoria de Renée Zellweger. Não fosse assim e tínhamos visto em sala todas estas softheads para corações “cloonizados” e exercícios de nostalgia cinéfila sob a fachada de uma história sobre o processo de profissionalização do futebol americano nos anos 20. Em sala ou fora dela, Clooney consegue com este filme desviar-se da boa rota que havia aberto dentro da excelente tradição do cinema liberal americano: o magnífico Goodnight, and Good Luck (Boa Noite, e Boa Sorte, 2005) e o posterior – menos bom, mas não menos incisivo – The Ides of March (Os Idos de Março, 2011) constituem os terrenos que o Clooney-realizador deveria continuar a percorrer, caso queira deixar de ser o seu próprio, mui condescendente, best pal.
The Alamo joga noutro campeonato. Wayne pega na história lendária da batalha do Álamo para pôr em cena temas antigos que o acompanham desde The Big Trail (A Pista dos Gigantes, 1930): a integridade do território, dos sentimentos e, como diz numa cena carregada de grandeur e “naiveté à americana”, da República. Filme elevado por um moral religiosa muito terra-a-terra (fordiana?), que nos ensina como homens corajosos são homens que temem por si, pelos seus e até pelos seus adversários; como a camaradagem (hawksiana?) é um pretexto sempre justo para qualquer causa e como não há responsabilidade histórica que a intuição não saiba interpretar. O seu Davy Crockett, congressista tenessiano que decide juntar-se aos rebeldes para defender uma província do Texas ainda sob domínio mexicano, mas ameaçada pelos planos imperialistas de Santa Ana, é o símbolo de tudo o que a metapersona de Wayne representa: uma figura paterna maior que a vida, maior que a história; por isso, serena, sagaz, incisiva, destemida… heróica por tudo o que a faz responder com justeza às demandas do seu tempo. Simultaneamente, este filme é um regalo para os olhos, sobretudo nas cenas filmadas de noite, entre a penumbra e a luz, que discretamente fazem (entre)ver as cores quentes do Technicolor, e nos planos onde a câmara de Wayne faz respirar a paisagem no espaço aberto pelo scope.
Um momento magnífico é aquele em que a personagem de Richard Widmark, coronel Jim Bowie, recebe a carta fatídica que lhe dá terríveis novas sobre a sua mulher. Widmark e o realizador-actor John Wayne são filmados numa zona iluminada do quadro. Ao fundo, um vulto interrompe friamente a cena, descompondo Widmark por ter recebido “correio não autorizado”. É Laurence Harvey, interpretando o comandante da missão, coronel William Travis (cujo diminutivo Will é todo um programa psicológico-filosófico para a sua personagem). Continuamos a ver os três actores no mesmo plano, sendo que Wayne se torna num mediador quase silencioso da raiva que Widmark destila contra Harvey. É Wayne que impede Widmark de desfazer Harvey ali mesmo: “a tua mulher não gostaria que fizesses isso…”. Widmark limita-se a passar a carta a Harvey, que a lê ainda na escuridão, em background. Entrado na zona iluminada, Harvey faz o mea culpa pela sua impertinente entrada em cena. É um exemplo deslumbrante de como Wayne, o actor, a personagem, dirige os seus pares, moderando a tensão que os une em middleground. Depois, perto do fim, a sua personagem, com uma tocha na mão, conduz uma parcela do batalhão inimigo para uma caserna repleta de explosivos. Ele dirige o inimigo para a morte, fazendo-se explodir a si mesmo. É uma maneira infernal de desfechar um filme produced and directed by John Wayne, já que são mandados pelos ares os elementos da mise en scène que Wayne tão meticulosamente soube compor ao longo de mais de duas horas e meia de filme: actores, set e o próprio realizador à frente da câmara. Ao actor-realizador fica, então, a recomendação justa: don’t act like a director, be one god dammit!