O cinema tem muitas particularidades que não encontramos na vida – a de podermos modular o tempo ao nosso desejo, criarmos pontes e encontros entre aquilo que nos inspira e nos faz querer sonhar. Mas o seu próprio potencial artístico está mais próximo das formas naturais da vida do que aquilo que poderíamos pensar à partida.
Flashback para a infância: instalado num país estrangeiro e numa língua que ainda não dominava, tentava então encontrar pontes com palavras para abrir as primeiras portas de entrada para o imaginário dos livros. Como quem procurava imagens nas narrativas dos outros para atenuar uma solidão, encontrar um amigo no movimento de uma língua estrangeira com quem pudesse falar em silêncio.
Piloto de guerra de Antoine de Saint-Exupéry foi desses primeiros livros que pude abraçar: as palavras de um piloto, na solidão de um céu poluído pela guerra, que encontrara uma paz para estabelecer a sua relação com o mundo – com o que não compreendera, não aceitara, ou para encontrar uma fraternidade em que todos falassem não a mesma língua, mas a sua própria em entendimento. Nem por acaso, viver num país estrangeiro com um imenso deserto aproximava-me dessa narrativa – tanto esses voos do protagonista, como as suas noites de silêncio antes de acordar cedo para, invariavelmente, ir para a minha própria guerra – as minhas manhãs nessa escola de língua estrangeira.
Quase vinte anos mais tarde, já amando essa língua que aprendi e integrei no meu mundo, entro numa livraria para encontrar, de novo, o mesmo livro. Ou melhor, o mesmo livro, mas de capa diferente (tal como eu). Da primeira vez que o fiz, abri-o como quem abre um filme: alguém que procura um lugar onde consiga ver aquilo que não sabia ver antes de lá chegar. Talvez por isso se descreva os cinéfilos como seres expatriados. E hoje, abro o livro à procura desse lugar que deixei e ao qual só posso voltar por uma projecção: a infância. E leio as suas palavras como uma primeira vez a seguir a essa primeira vez:
“Quando eu era um pequeno rapaz… Mergulho fundo na minha infância. A infância, esse grande território de onde cada um saiu! De onde sou? Sou da minha infância. Sou da minha infância como sou de um país.”
Porque é que Saint-Exupéry tem a ver com cinema? Porque soube ver de onde vinha o seu olhar e para onde deveria dirigi-lo. Hoje, na idade adulta, se por vezes me sinto perdido ou me esqueço para onde devo olhar e como devo fazê-lo, lembro-me dele e de quando também me disse: “O essencial é invisível aos olhos.” Daqui a vinte anos, o que dir-me-ão essas palavras? Espero apenas existir para ver que fui fiel a esse país, tal como um piloto que procura no céu o entendimento com a paz serena do mundo.