Muito do que escrevi sobre Moonrise Kingdom (2012) aplica-se a The Grand Budapest Hotel (Grand Budapest Hotel, 2014). Se, na altura, intuía que haveria um Wes Anderson pós-Fantastic Mr. Fox (o Fantástico Senhor Raposo, 2009), agora dissiparam-se quaisquer dúvidas. Desde essa animação que o cinema de Anderson se assemelha cada vez mais a um stop-motion com actores e cenários reais (e mesmo os cenários são cada vez mais artificiais – neste filme de “imagem real” há sequências de animação).
O controlo do realizador texano sobre todos os aspectos dos seus filmes – cenários, guarda-roupa, adereços, banda sonora, tiques dos actores, o tom de vermelho, o ângulo exacto da câmara (medido a regra e esquadro), quase arriscaria a escrever o próprio catering – sempre foi o de uma criança obsessiva a criar universos de fingir, mas a compulsão agravou-se. Sente-se que da imaginação de Wes Anderson para o resultado final não existem já diferenças. Haverá, com certeza, quem ache este poder absoluto de Anderson sobre a sua obra (um poder de déspota esclarecido, entenda-se) asfixiante, que aniquila a leveza dos primeiros filmes, mais livres e inocentes. Haverá também quem ache que Anderson tem forçado de mais o estilo “quirky”, esdrúxulo, por já não conseguir ser engraçado. É complicado negar que Wes Anderson está mais cínico e que os sorrisos são mais amargos (a razão para lhe encontrarem menos graça?). Algo o aproxima de Ernst Lubitsch e The Grand Budapest Hotel de um filme como To Be or Not to Be (Ser ou Não Ser, 1942) e não é só a Europa de cartão. No entanto, muito paradoxalmente, é bem capaz de ser, ao mesmo tempo, o seu filme mais idealista e o seu filme mais pessimista.
Porventura, será essa a grande marca do cinema de Anderson pós-Fantastic: o oxímoro. Do crescente constrangimento da forma, da aparência lúdica e infantil, brotam as pulsões mais primárias. Se em Moonrise Kingdom, a sexualidade adolescente latejava, em The Grand Budapest Hotel a violência irrompe, obscena. Mesmos que algumas mortes fiquem em off, quase fora do filme (como se lhe não quisessem pertencer), não doem menos por isso. Ferem ainda mais, por ser recusado ao espectador qualquer tipo de luto (o mesmo que cobre as personagens e o filme todo). Por outro lado, no meio de uma trama meio descabelada (que envolve roubos de quadros, perseguições várias de policial folhetinesco), os momentos de gore perpetrados pelo vilão Willem Dafoe (uma versão “humana” do Rat de Fantastic) e os actos violentos invisíveis praticados pelas forças repressivas não identificadas (mas claramente associáveis às SS) são notas tão dissonantes que despertam para o mundo lá fora. Fora do hotel. Fora do cinema.
No Grand Budapest Hotel, sito em Zubrowka (nome de vodca e de país fictício da Europa de Leste, vítima primeiro do fascismo e depois do comunismo), vive-se ainda a distinção dos luxos novecentistas. O M. Gustave de Ralph Fiennes (formidável, como se tivesse pertencido desde o início à numerosa família Anderson, cujos membros marcam todos presença, por mais pequeno que seja o papel que lhes cabe), concièrge extraordinaire e geriófilo convicto (admirador de antiguidades e anacronismos), é o paradigma desses tempos em que a civilização não tinha sido conquistada pela barbárie, em que mais importante do que a luta de classes era ter classe. Um tempo que, segundo Zero, o empregadito de hotel seu protegido, já não existia, embora ele “certainly sustained the illusion with a marvelous grace”. Um tempo que, no meio desta “slaughterhouse called humanity”, provavelmente nunca existiu. A não ser no coração de alguns homens como M. Gustave, uma relíquia de uma civilização impossível.
Wes Anderson afirmou que a obra de Stefan Zweig influenciou sobremaneira The Grand Budapest Hotel e a dedicatória, as iniciais em vez dos apelidos por extenso, as histórias em boneca russa não o deixam mentir. Terá ficado também uma marca do suicídio no paraíso (em Petrópolis) do escritor vienense: a sensação de que a resposta adequada ao desaparecimento de nobreza e do carácter nos homens é a desistência (ou que a valentia perante o totalitarismo é já de si um gesto suicidário).