“Everybody’s life has some rain in it”. A frase de Bernard Herrmann atinge esta sopa como uma tempestade, porque o cinema está cheio dela e ela só parará – se parar – por força do solar happy ending de que estaremos, quase sempre, à espera. A água que cai furiosa dos céus é sempre esse elemento dramático que precipita as coisas para o seu fim: amantes que se encontram ou se desencontram para sempre, vilões que perdem a batalha final e aproveitam a água para a purificação impossível… A tempestade narrativa tende, assim, paradoxalmente a apaziguar com ela, a chuva. A questão é saber se depois da tempestade vem a bonanza. Nós por cá baptizamos com ela a primeira participação de Francisco Noronha na nossa Sopa de Planos. Agasalhe-se bem.
Em Casablanca, o adágio de que a água lava tudo não podia ter contrapeso maior: na verdade, para o amor de Rick e Ilsa, ou, sendo mais exacto, para Rick, a água não lava coisa nenhuma. Numa noite em que chove copiosamente – melhor: em que o céu “chora”, como que antecipando o que se passará a seguir –, Rick aguarda ansiosamente, como combinado, por Ilsa na estação donde deverão apanhar o comboio que os levará para Marselha, evitando, assim, a iminente chegada nazi. A chuva, intensa e ruidosa, só acentua a sensação de incómodo e urgência em abandonar Paris (mesmo para aqueles que will always have it…). Ilsa, porém, nunca aparecerá. O único – e, então aparentemente, último – sinal que Rick terá seu é o bilhete que lhe deixou no hotel, e que lhe é trazido por Sam. Encharcado, e esquecendo-se, por momentos, da chuva, Rick lerá, com um soco do tamanho do mundo no estômago, esse bilhete, momento em que Michael Curtiz já nos comoveu com um plano subjectivo sobre as palavras escritas por Ilsa. A água não lava nada: não lava aquele que é, sabemos nós e sabe-o Rick, um amor para a vida/um amor de uma vida, ao qual Rick continuará irremediavelmente preso. A água não lava nada: a água borrata, sim, a tinta das palavras, fazendo com que esta se espalhe como uma mancha (de amor, de sangue) que aumenta, alastra, de forma ameaçadora, no que plasticamente sugere o paradoxo que é o do amor ganhar ainda mais força (ao menos num sentido trágico) nos momentos de ruptura abrupta em que uma das partes fica “sem pé”. Simultaneamente, porém, personificado nessa tinta sangrenta, o amor escorre do papel, esvai-se, foge-lhe (a Rick) por entre os dedos. É esta a duplicidade confusa, pungente, que a chuva gera: por um lado, nada lavando, indicia o amour fou a que Rick ficará agarrado para a vida, mas, por outro, é ela que faz desaparecer o último sinal de vida de Ilsa, desbotando as suas palavras para um qualquer ralo de esgoto. A chuva dá e tira.
Francisco Noronha
Key Largo (Paixões em Fúria, 1948) é um filme do pós-guerra sobre o medo: Bogart é um homem medroso, um borra-botas orgulhoso, que quando tem a arma para disparar não o faz, e ele não sabe que ela está vazia, e podia fingir que sabia, mas não o faz, ele admite a sua incapacidade de combater o terror, no corpo de um mafioso em fim de carreira. Ele, o mafioso (Edward G. Robinson), é a maldade em pessoa – gosta de fazer sofrer – e Huston confere-lhe essa aura de nojo, não lhe dando corpo durante a primeira meia hora do filme. Mas é maravilhoso vermos o medo a funcionar, quando a natureza se levanta, o vento sopra desolador, a chuva cai copiosa… até o mafioso teme pela vida, e Bogart, talvez levado pela chuva, talvez levado pelo vento, talvez levado pela humilhação, diz-lhe qualquer coisa como, tens medo da tempestade? dá-lhe um tiro a ver se ela vai embora. Este é pois um filme onde se coloca em perspectiva (não fosse todo ele um exercício sobre a profundidade de campo) o horror da guerra, porque apesar de tudo há ainda essa arrasadora destruição sem cérebro vinda dos céus. Mas tudo se inverte nesse plano belíssimo: mar alto, barco desgovernado, a bússola roda desvairada, Bogart agarra-se ao leme, inverte o sentido, e a bússola estabiliza, está de volta, a casa e ao seu ser. Comunica por rádio para Bacall, e dá-lhes as boas novas, ela, em alegria, tira a casa da escuridão a que a tempestade havia obrigado, abre uma janela e entra uma luz brilhante sobre a sala e sobre ela, que ri alegremente, angelica(l)mente. A tempestade foi-se e com ela o medo.
Ricardo Vieira Lisboa
A câmara está do lado de fora, à chuva. Lá dentro, no grande teatro, a tristíssima prima ballerina que irá dançar a primeira apresentação de um bailado no dia seguinte, desmaquilha-se, sozinha, quase às escuras, a tentar suster os fantasmas do passado, que vieram assaltá-la, depois de anos de apatia auto-imposta, uma filosofia de “morte na vida” aprendida com o cínico tio que a levara, poucos planos antes (muito tempo antes), num táxi para casa, debaixo de uma forte bátega. Agora, ela, Marie, Maj-Britt Nilsson, olha cá para fora, como se indecisa se há-de finalmente deixar entrar a chuva. Ou deixar correr as lágrimas, o que vai dar ao mesmo. De repente, uma torneira começa a pingar, decidindo por ela. E, de repente, embora aquele cheiro esquisito que todos notavam (mas nem todos estavam dispostos a reconhecer – e é uma pena não poder haver uma sopa de cheiros) já o indiciasse, um teatro quase vazio a meio da madrugada torna-se o palco de todo o tipo de aparições, de fantasmas-palhaços de carne-e-osso que insultam, atemorizam, nos ordenam a voltar a viver. É o início da caminhada de duas sapatilhas até beijarem um par de sapatos e saírem em pontas.
João Lameira
“Quando eu morrer / não me dêm rosas / mas ventos / Quero as ânsias do mar / quero beber a espuma branca de uma onda branca a quebrar / e vogar”. É ver The Public Enemy (O Inimigo Público, 1931), The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939) e White Heat (Fúria Sanguinária, 1949) e trazer connosco a certeza que ninguém morreu nos filmes como morreu James Cagney nos filmes. É ver esses gangsters de Hawks, Walsh e Wellman a levar a vida como um bailado cósmico com a morte, vontades e quereres incendiários capazes de destruir tudo à sua volta, filhos e produtos de tempos e sociedades implacáveis. Public Enemy nem do prólogo precisava, que assim só volta a dizer o que nesses planos à chuva dizia. Ali Cagney teve a sua redenção, ali Tom Powers depôs do seu corpo nos seus termos, ali Powers livrou a família dos seus maus hábitos e caminhos, ali se confessou e ali se descobriu. Sorrisos e lágrimas, tragédia e beleza numa dança de espasmos e tropeços desesperados na corda bamba e, por segundos, fora de alcance dos desenhos do destino, lavado pela chuva benta dessa noite. Segundos a que só Cagney ascendeu, por poder mais que a morte. “Quando eu morrer, não me dêem rosas”.
João Palhares