Para o bem e para o mal as coisas vão-se matizando. Já não podemos ver um filme de porrada sem que o vilão sofra de um complexo de édipo ou de desarranjo intestinal – a cara é mais ou menos a mesma… -, os piratas já não podem ser simples bonecos, têm que ter motivações e passado, os heróis já não são bons porque são heróis, são-no por um qualquer princípio moral, por uma qualquer obrigação familiar ou espiritual. Enfim, para vermos um enxerto de pancadaria temos que sofrer monólogos pastosos sobre a fragilidade da bondade humana. Ainda bem que existe ainda um Stallone neste mundo moderno, porque já nem o Jackie Chan nos vale nos dias que correm.
Tudo se torna cinzento, já não reconhecemos o que é do que não é, o que parece do que aparenta. Dessa miscigenação já se produziu grande arte, veja-se o trabalho do realizador Jia Zhangke em 24 City (2008) onde se funde documentário e ficção ou o recente desempenho de Conchita Wurst com Rise Like A Phoenix onde se funde o travestismo masculino com a pilosidade facial. A dúvida toma o espectador, o que estamos a ver? E dessa dúvida produzem-se objectos que jogam com as interrogações da audiência, que nos desafiam a deitar por terra as nossas ideias de género (fílmico?) e abraçar o que não aceita etiquetas ou gavetões.
Mas se as coisas vão ficando variegadas o trabalho de as comercializar torna-se mais complexo. Se tudo é único, as comparações tornam-se infrutíferas. E se não faz sentido comparar é impossível aconselhar o que quer que seja, já que se dinamitou a matriz de referências que de algum modo guiavam o consumidor/espectador. Deste fenómeno da singularização da criação artística, nomeadamente da produção independente de cinema, originam-se obras tão incaracterizáveis como incomercializáveis. Há por isso um firmar de posições de grande parte das distribuidoras sobre o que trazem às nossas salas e como o vendem.
Neste sentido as passadas semanas de estreias (e as que se aproximam) indicam esse firmar posições – onde as fronteiras entre ficção e documentário são ainda cristalinas. Entre Abril e Maio estrearam-se (ou vão estrear-se) treze longas documentais, como que dizendo a todos que independentemente das efabulações artísticas, o mercado ainda prefere a separação das águas criativas. Os onze filmes foram: Olho Nu (2013) de Joel Pizzini – exibido anteriormente na secção Heart Beat do DocLisboa 2013 -, Tropicália (2012) de Marcelo Machado – também exibido no Heart Beat do DocLisboa 2012 -, Mistaken for Strangers (2014) de Tom Berninger – outro ante-estreado no Heart Beat do DocLisboa2013 -, L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013) de Rithy Panh – exibido fora de competição no LEFFest 2013 -, Twenty Feet from Stardom (A Dois Passos do Estrelato, 2013) de Morgan Neville, Sacro Gra (2013) de Gianfranco Rosi – exibido durante a retrospectiva do LEFFest 2013 ao realizador -, 1960 (2013) de Rodrigo Areias – sessão especial no DocLisboa 2013 -, Yama No Anata (Yama No Anata – Para Além das Montanhas, 2011) de Aya Koretzky – vencedor competição nacional DocLisboa 2012 -, Cativeiro (2012) de André Gil Mata – competição nacional no DocLisboa2012 -, Guerra ou Paz (2014) de Rui Simões, The Act of Killing (O Acto de Matar, 2012) de Joshua Oppenheimer – presente na competição Pulsar do Mundo do IndieLisboa 2012 -,Vida Activa (2013) de Susana Nobre – competição nacional do DocLisboa 2013 – e A Mãe e o Mar (2013) de Gonçalo Tocha – projecto do Estaleiro para Vila do Conde e vencedor da competição nacional do DocLisboa 2013. (Não estou a contar com o filme-concerto da Violetta nem com o documentário sobre Fátima no mundo – filmes de pacote da ZON, perdão NOS.)
Todos estes filmes, com excepção do oscarizado Twenty Feet, já haviam tido exibições em festivais nacionais, no entanto cada um deles revela algo louvável sobre o modo como foram distribuídos – isto porque, estatisticamente este é o período do ano com menor afluência às salas, porque o documentário não é o género mais apreciado pelo grande público e porque cada filme é um filme e por isso merece um trabalho específico de distribuição adequado às suas potencialidades na geração de espectadores. Quatro estratégias diferentes foram tomadas:
1. Os dois primeiros, documentários musicais, foram estreados acompanhando os sururu que os espectáculos de Ney Matogrosso e Caetano Veloso causaram no nosso país (respectivamente). O primeiro aproveitou a presença do cantor para apresentar umas sessões de antestreia. Mais interessante ainda, o segundo, distribuído pela Alambique, estreou-se em simultâneo em sala e no Video On Demand e três dias depois foi editado em DVD nas lojas e quiosques do país (estratégia que se repetirá com o filme sobre os The National). O que se nota em ambos é que a carreira dos filmes faz apenas sentido quando de facto aproveitam os eventos em causa – momentos mais que mediatizados e por isso mais que publicitados – os filmes colam-se aos acontecimentos e portanto descolam das prateleiras para os televisores dos portugueses, ou os portugueses das cadeiras para a sala de cinema.
2. Os três seguintes na anterior lista correspondem àquilo que vem sendo a nova programação do Espaço Nimas, onde, mais do que os filmes se programa em colectivo conferindo a um espaço a noção de habitáculo de eventos cinéfilos. Retrospectivas, homenagens, ciclos, sessões especiais, debates e mesas redondas sobre filmes, tudo isso gera um hábito e torna a ida ao Nimas uma rotina – muitas vezes independentemente do que lá se exibe. O mais recente ciclo dedicado ao documentário juntou os filmes de Panh, Rossi e Neville e acrescentou-lhes uma série de outros em fundo de catálogo aproveitando as efemeridades da revolução para algumas sessões de debate. Cada filme poderia não aguentar-se sozinho numa sala, mas em conjunto conseguem-no.
3. Os outros quatro títulos que se seguem são distribuídos pela Nitrato e pela RealFicções. A primeira desde o início optou por um sistema alternativo de exibição, preferindo o circuito dos cineclubes em detrimento das salas comerciais. A segunda corresponde a um caso quase único em Portugal já que é também produtora, editora e distribuidora dos filmes de Rui Simões e companhia – no caso de Guerra ou Paz optou-se por uma digressão pelo país em simultâneo com o lançamento próprio do DVD. Em ambos os casos os métodos paralelos de distribuição adequam-se aos filmes em causa, em especial a Yama No Anata que, além de já ter tido várias sessões pelo país devido ao prémio obtido no DocLisboa, foi também já alvo de emissão televisiva na RTP2 (Cativeiro não teve essa exibição mas já esteve disponível para streaming gratuito várias vezes no site dafilms), ou o caso do filme de Rui Simões que aproveitou a efeméride dos 40 anos da revolução para num mês e meio levar o filme ao maior número de pessoas (fora dos centros urbanos).
4. Tanto The Act of Killing (Alambique), A Mãe e o Mar (Agência da Curta Metragem) e A Vida Activa (Terratreme – distribuição própria) optaram pela exibição regular, no entanto (e não por acaso), os três fazem-no numa das poucas salas do país que está aberta a objectos oblíquos como estes, o Cinema City Alvalade. Mais, no caso do primeiro, aguardar pelo desfecho dos Oscars permitiu que The Act of Killing ganhasse reconhecimento mediático. No entanto ainda está por ver, em terras lusas, campanhas como a que a distribuidora do filme de Joshua Oppenheimer nos EUA promoveu, a Drafthouse films. Numa parceria com o BitTorrent – um dos programas mais populares para o download de filmes em torrents, entenda-se o grande instrumento da pirataria – a distribuidora criou um pacote em que o download do programa se faria juntamente com uma série de materiais relativos ao filme (making of, ensaios, fotografias, reportagens sobre a importância do filme na Indonésia, etc…), conseguindo assim alcançar em pouco mais de um mês cerca de 3.5 milhões de potenciais espectadores – quase três vezes o número de visitas aos mesmos conteúdos disponíveis no YouTube.
Compreender que o espectador em sala é também um espectador caseiro e também um pirata é talvez o ângulo fundamental para o fazer regressar mais vezes à sala – mas isso só será possível se a experiência em sala for de facto compensatória. Cada uma destas estratégias tenta isso mesmo, está no entanto por verificar quais delas realmente funciona(ra)m.