Flores do mal, flores do bem. Com o perfume vem a sedução e, por vezes, tantas vezes, o veneno. Há quem resolva o mistério comendo-as. Veja-se Chaplin, em Limelight (Luzes da Ribalta, 1952), e o velho esgrouviado de The Diary of a Chambermaid (O Diário de uma Criada de Quarto, 1946) de Jean Renoir. Para estes dois, as flores também se comiam. A ingestão perfumava o estômago e, talvez, a alma. O romantismo era mais interior, intestinal, do que exterior, de meras aparências. Nesta Sopa de Planos primaveril também propomos a ingestão da planta bela que tantas vezes transforma o cinema num jardim, isto é, num banquete colorido para os olhos.
O insustentável peso de uma flor. O gesto é simples, mas toda a sequência demorou meses para sair tal como Charles Chaplin a idealizara. Bastava a Virginia Cherrill, interpretando a rapariga cega, segurar uma flor e, estendendo o braço, oferecê-la ao tramp que por ali passava. A actriz, na sua incapacidade de esboçar este movimento tão singelo, exasperava o realizador. Chaplin ponderou substituí-la, mas os custos já eram tais que lá respirou fundo e aceitou prosseguir. Tentava, falhava outra vez, falhava melhor. A flor pesava o mundo, mas a quem? À actriz? A Chaplin? Ao amor que ela, com o seu perfume, ia abrir e virar para o sol que tudo ofusca, que tudo cega? A cega ia voltar a ver graças àquele gesto, que não seria apenas uma transacção; graças àquela flor, que não seria apenas uma flor. Tudo parece simples, mas tudo começa nessa simplicidade brilhante, verdadeiramente total!, que compõe, como uma sinfonia, City Lights (Luzes da Cidade, 1931). Jorge Jesus disse que não é por não vermos que as coisas “não estão lá” investidas. Pois bem, esta sequência do “mister” Chaplin é o exemplo supremo dessa lição: dias e mais dias, milhares de dólares, fricções pessoais de todo o tipo, dores de cabeça imensas e tudo (também) por causa de uma flor, um gesto simples que, hoje, no ecrã, passa com a naturalidade de um sorriso ou de um beijo. O perfeccionismo de Chaplin está lá, mesmo que o espectador não o veja. Está lá, na imagem daquela flor, precisamente.
Luís Mendonça
O título do filme de Andreas Dresen terá baralhado muita gente: “Wolke 9 (Cloud 9, em inglês)? Porquê? Nuvem nove?!”. Para os americanos, a expressão (being on) cloud 9 significa um estado extremo de alegria ou euforia, ou seja, e em bom português, “estar nas nuvens” (tudo porque, na classificação científica das nuvens, que a há, a nona categoria corresponde à cumulonimbus, a nuvem que mais alto se consegue elevar). O que não deixa de ser curioso, uma vez que a alusão às nuvens tanto serve este sentido (de alegria), como o diametralmente oposto (alguém que vive com “nuvens na cabeça”; os dias serem “nuvens cinzentas”). Certo é que, não por acaso, neste plano, nenhuma nuvem – das últimas, as tristes e amargas – pontua o céu: o céu está limpo e a sua tonalidade ligeiramente violeta faz um dégradé lindíssimo com o vermelho exuberante da imensidão de flores que, em profundidade, nos leva até aos dois vultos que vemos, ao fundo, montados numa bicicleta. À frente vai Karl; no seu encalço, Inge, uma mulher na casa dos sessenta que, casada há mais de 30 anos com Werner, encontra em Karl uma renovada fonte de amor, de carinho e desejo. Tal como acontece com as flores, Inge desabrocha nesta Primavera (é a “Primavera da sua vida”, por oposição ao seu outonal/invernoso casamento), estação, aqui, de um vermelho primário (o das flores e o da própria Inge, que, como se costuma dizer, ganha outra cor), em sintonia com o “primitivismo” do seu amor por Karl, porque, afinal, na juventude ou na velhice, o amor faz-se de passeios de bicicleta, de piqueniques à beira-rio, de cumplicidades tolas. Na juventude ou na velhice, o amor é estar na… wolke 9.
Francisco Noronha
Poder-se-ia dizer que nunca uma flor foi tão erótica como em Os Abismos da Meia-Noite (1984), estar-se-ia a exagerar com certeza mas é também desse discurso hiperbólico que se faz a crítica de cinema, não fosse ela uma manifestação de amor – e coisa mais hiperbólica não há. É também de amor (hiperbólico) que fala o filme de António Macedo, dessa coisa própria de “criaturas do espaço extra-sideral”, que é até capaz de surpreender os deuses todos poderosos. Mas regresse-se ao erótico; uma herbácea fálica sobrepõe-se a uma folha em forma de concha cujo centro é carnudo e encarnado, desse centro jorra uma substância leitosa que escorre pela concavidade formando uma gota na sua extremidade. É a gota mística que uma vez caindo no centro da flor rosada iniciará o novo milénio de prosperidade e produzirá a única água pura de todo o universo. O simbolismo não podia ser mais evidente – ali, na troca de fluidos se forma a vida: folha-pénis pingando em flor-vulva e tudo recomeça. Mas talvez, mais que o trabalho deliciosamente esotérico de Macedo – que hoje se vê com um misto de deleite e revivalismo -, o que agarra essa cena é o olhar depravado de Agostinho Alves antecipando o momento da ejaculação floral, cujo personagem tem o literal nome de Ilustre Contemplador. São os deuses sumos voyeurs? Ou é o cinema, e nós espectadores-deuses, quem se baba lascivamente defronte de todas as imitações do real? Macedo sempre recusou esse horror do real e Os Abismos da Meia-Noite é prova cabal disso; aqui também nos babamos, mas desta vez com o delírio pictórico e com toda a panache irreverento-patética do cinema do autor.
Ricardo Vieira Lisboa
“As flores do mal dos filmes dos anos 40”. Aqui são as margaridas e servem tanto de armadilhas e artimanhas psicológicas, como de feitiços de amor ou portais mágicos para o passado. Aqui, em Experiment Perilous (Noite na Alma, 1944), um dos mais encantatórios Tourneurs, onde os planos de margaridas são muitos. Mas só quando Nick Bederaux (Paul Lukas) – ser consumido pela dúvida e pelo ciúme – decide decorar a mesa de jantar com as flores é que os seus múltiplos efeitos se nos tornam evidentes. Já sabíamos que algo não estava bem, que algo não batia certo nessa ficção diabolicamente montada pelo marido de Allida (Hedy Lamarr, deusa), mulher de beleza amaldiçoada, mulher de inocência destroçada. Desde que o comboio percorre esses carris fragéis e soltos em direcção a Nova Iorque, no início do filme, que sabemos que o doutor Bailey (George Brent) vai percorrer caminhos igualmente incertos. Ele que, como o misterioso “A. Gregory”, vira Allida num campo de margaridas. Ele que, como o outro, se apaixona por ela. As flores são compradas a rodos e enchem a casa, selam amores e denunciam crimes, se calhar sempre nesta ordem, num ciclo que talvez não seja possível quebrar. Que acontece a Bailey e Allida depois desse último plano no aparentemente idílico campo de flores? Irá ele condenar-se às dúvidas, ao ciúme e à loucura de Bederaux? Eu vou jurar, aqui, que desta segunda vez que vi Experiment Perilous, percebi ainda menos que da primeira.
João Palhares
Se não estivesse já devidamente provado que a obsessão de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) é por aquela mulher-tríplice (Madeleine, Carlotta Valdes, Judy) ou mesmo quadrúpla (se se contar com Midge, que desaparece num corredor escuro a meio do filme), estaria tentado a escrever que o tema deste malsão e perigoso filme é um ramo de flores. O ramo de flores que Madeleine compra num florista de São Francisco, sob o olhar do maior voyeur da história do cinema, Scottie ou Johnny-O ou simplesmente John, para o depositar na campa de Carlotta Valdes, antepassada que deu em doida no séc. XVIII e em possuir o seu espírito no séc. XX. O ramo de flores com que Carlotta Valdes posou para o quadro que Madeleine vai visitar a um museu sob o olhar do mesmo voyeur. O ramo de flores que Madeleine leva quando visita o museu para ver o quadro de Carlotta Valdes sob o olhar do dito voyeur. O ramo de flores que Judy compra num florista de São Francisco quando se faz passar por Judy e que traz para o cemitério e para o museu quando vai visitar a campa e o quadro de Carlotta Valdes (respectivamente), sob o olhar do tal voyeur. O ramo de flores com que Midge pousa para um quadro que pretende imitar o outro quadro em que Carlotta Valdes pousa com o ramo de flores e que Madeleine e Judy visitam, cada qual com o ramo de flores. Sempre sob o olhar do voyeur.
João Lameira